Caridades

É só botar essa música que a imagem dele já me vem na cabeça. Aquela coisa toda, agonia que eu gostava de ignorar, calor dum verão que parecia não acabar, falas de filmes ainda não exauridas por mim. Agora é a espuma da cevada quente que me faz pensar noutro alguém, seja lá quem for. Me faz pensar nessa face estranha e familiar ao mesmo tempo, nesse gosto com que tanto sonhei e agora deu de me confundir.

Faz-me sentir de tudo também; todas as belezas e horrores, manchas no reflexo já difuso por si só. Faz-me querer esse monte de erro, de queda, de caos. Faz-me tentar tudo isso. Qual o propósito, pergunto-me? Nenhum, a gente sabe disso. Nada irá tirar-me daqui, desse fim de caminho, fundo de poço. E eu não quero ficar sozinha. Não quero ficar aqui, lembrando disso tudo. Todo esse circo, esse pesadelo cheio de gosto bom que vem e me tenta o tempo todo. Não quero lembrar da tua face, tua voz. Das coisas que eu pensava, criava, imaginava para a gente naquele tempo. Ah, quanto tempo tudo isso já faz.

Como as cores recriaram-se, como tua face deu-me novas matizes, passos, horizontes que até agora não soube encontrar. Como tua beleza floresceu. E a minha também, dê-me esta ao menos. Eu andei, larguei-te, conheci tanto rosto, pressupus tanto gosto, sabor diferenciado, mas lógico, ainda inspirado no teu. Teu que, olha só, eu nem tive a audácia de sentir. Fui grande, fui boa: deixei-lhe partir. Deixei-lhe ir e ver esse monte de coisa louca, ter esse arrepio na pele que não pude orgulhar-me de causar. E tu fores sem ao menos contestar: claro. Porque diabos iria fazê-lo? Tu nem ao menos tinha noção desse furacão todo em que eu te coloquei.

Eu te quis sei lá porquê. Expressão, sorriso escondido, voz contida e saborosa em suas minuciosidades. Quando tu fostes, sabe-se lá o que fores realmente feito de mim. Eu te quis. Neguei, joguei-lhe fora por nada o tempo todo. Vistes com outras vertes, vontades, verdades e nisso, morri. Nisso precisei cortar teus dedos de minha pele, teu tato e o que criara do que tu carregavas em tua boca. Não o senti e nunca farei-o, tudo bem. Não lhe quero mais, juro-- hoje minha ruína é outra. Tem outro nome, toque, sensibilidade. Tem outra alma que faz a tua parecer-me brincadeira de criança.

E hoje, ela é tudo que eu quero. Quero ter, quase tenho; possuo quase que por toda, deixo escapar entre minhas linhas e permito o vento vir com sua intromissão e levá-la de mim. Levar-me, aliás, pois sim: agora és tudo que eu tenho, jamais terei. Jamais irei querer e imaginar, jogar em minha mente e deixar esse monte de amor carregar para sabe-se lá aonde. Agora é isso, chega de criar caminhos nessas entranhas fechadas e escondidas da verdade: preciso enfrentar-lhe.

Tu és meu medo, desejo e perdição, necessidade e prova de tudo que possa existir em mim, toda a poesia que declamo com orgulho mas não sei soletrar; tu, seja lá qual for o traço de tua face, és meu porto e inferno, vontade e negação. Tu jogas-me ao fim e faz-me nascer de novo, ditas se vivo ou se morro. E eu te amo por isso, pela vida que me dás. Nunca deixes de fazê-lo, nunca desintegre-se nesse ar e deixes-me aqui sozinha. Tua indefinição é o que permites e fazes-me amar, respirar toda a humanidade que consigo encontrar de vez em quando nessa pele tão sedenta por algo assim, que tu prometes-me oferecer e acreditar numa vida nova.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 05/11/2014
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