Inocência

É engraçado como todo mundo enche a boca na hora de falar de amor. Nós adoramos o poético, idealista, precisamos mergulhar de cabeça em toda essa ladainha ilusória que já conhecemos tão bem. E não tem nada de errado nisso, claro. Acho que precisamos acreditar nisso até, nesse horizonte estranho, que ainda dê para caminharmos e descobrirmos algo além daqui; olhar para o agora só nos joga no chão, leva toda a graça, a beleza da coisa. Se não sonhamos, não sabemos como andar.

Aí que começa tudo: amor verdadeiro, platônico, perdido, impossível. Aquelas linhas e linhas sempre dando voltas na mesma imagem inalcançável que nos faz tão bem. Aí dizem que o amor é uma mágica sem explicação; que é um encaixe perfeito, um entrelaçado sem falhas de gente, de almas que casam-se ao bater o olho uma na outra. Que quando tem de acontecer, um segundo é o suficiente para todo o encantamento, que o ar muda, que tudo nos toca duma maneira que nunca sentimos antes.

Mas pensando bem, já não acho que seja bem assim; acho que, na maioria das vezes, o amor é questão de sorte. Pura sorte e nada mais. Dizem que devem nos amar pelo que nós somos, não é? Isso soa bonito demais para mim. O que nós somos, então? Não há louco que mostre-se assim, desnudo de cara, no ato para quem passa, para o estranho que for. Nós criamos imagem, mentimos, mudamos. Mudamos o tempo todo por todo mundo. Nos preservamos com todo cuidado dizendo que só verá quem merecer. Mas e o quanto deixamos pelo caminho até lá? E o que roubam de nós, o que ganhamos da vida, do vento, das vozes, inúmeras essas que vem e murmuram nos nossos ouvidos até lá? Até aqui, até seja onde puxarmos um suspiro e resolvamos enxergar que não há o que fazer? Isso nos dói só de pensar. Me dói, ao menos.

Eu não quero dizer que isso é tudo que eu sou e jamais irei encontrar fração nenhuma renovando-se em mim. Eu não quero me doar para alma alguma nesse instante. E não quero ficar sozinha; quero teu abraço, teu bafo e dominância que cesse o meu pensar nem que por um segundo. Tu queres a mesma coisa que eu sei-- e ai, o que nos sobra, então? Porra nenhuma. Somos o que dá para fazer agora, a energia que fica daquela noite mal dormida e rege nossos passos, nossos atos pelo dia em que encontremos uma sombra nova para perseguir; ninguém nasceu para ti e tu não és o cais de ninguém, vamos aceitar isso de uma vez, vamos largar dessa ilusão.

O amor, na melhor das hipóteses, é a caridade que o vento resolve jogar aos

nossos pés quando não estamos prestando atenção. E basta uma piscadela escapatória apenas para o deixarmos partir e perder esse resquício de loucura que passa e nós nem ao menos conseguimos enxergar. Mas o sonho, ah sim, precisamos dele: precisamos ser tolos o bastante para jogar todo nosso fôlego, humanidade arrastada por aí e ver quem cata, quem esbarra e nos faz acreditar. Essa ignorância é o que nos salva, mesmo que sejamos teimosos em negá-la. Que seja, que venha então; venha a vida e todas as imitações de fantasia que eu puder aceitar e levar comigo, chamar de destino e mentir para mim mesma.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 05/11/2014
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