Simbiose

Eu gosto da minha pele morena; gosto das unhas que crescem pro lado errado por eu nunca deixá-las em paz. Gosto da voz esganiçada que ouço na gravação. Gosto do cheiro que fica na roupa horas depois sem eu nem perceber. Do meu traço no rabisco, do jeito que arrumo as palavras pra ver se sai algum sentido de lá.

E gosto de tanta coisa em tanta gente também. Daquela arrebitação no nariz dos outros, de sardas que não sejam no rosto, de sotaque, qualquer sotaque que for. De gente quieta que se solta e encanta os outros de repente. Dum falante que para e respira, deixa algo mais sério escapar e nem o ver fazê-lo. Dos abraços rodopiantes dos meus amigos, da conversa fiada com um colega no corredor. De gente simpática no ônibus, de comerciante que troca ideia porque sabe que atraí a clientela; de gato manso na rua que não foge e me deixa passar a mão.

Da minha voz rouca de gripe que alcança os agudos que eu tanto gosto. De acordar cedo e não deitar de novo como sempre por causa do mal humor. Dessas coisas minúsculas e quase invisíveis, tão retraídas nesse monte de buzina de carro, luz ofuscante do farol, fumaceira insistente que arde o olho da gente. Gosto daquilo que consigo verbalizar sem medo-- ou com medo sim, pode ser.

Eu sou um poço dele, eu sei; receio e tanto pensamento, dúvida, contestação e consideração idiota, haja fôlego pra tudo isso. Fôlego esse que eu não tenho, nunca tive. Deve ser por isso que sempre me sinto assim, sufocada. Afogada, com tempo marcado, com os passos contados pra chegar sabe-se lá aonde; é por isso que eu preciso disso tudo. Da cordialidade da vida, dos minuciosidades do vento: das frações de beleza escondida que, se chegam à nossa boca trazem todo esse prazer.

Esse gosto surreal e tão comum, tão banal que nem chegamos a saber que existe; o da respiração sem cronômetro, do suspiro mais profundo que a gente consegue encontrar. Do que tudo isso e todo mundo daí, desse chão pode vir e deixar, presentear-nos bem diante de nossos olhos. Dos meus e de toda a poesia, a banalidade maravilhosa e delicada, quase inatingível que eu ainda posso enxergar e sentir ao meu redor. Do momento em que o reflexo desnudo me agrada e permite-me sair, dizer e correr, tocar todas as peles que derem-me sua permissão.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 07/11/2014
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