Meritocracia Humanística

Eu não sou artista, sei disso. Acho que é prepotência demais de nos intitularmos assim, como se houvessem méritos que definissem o que somos lá no cerne. Como se o sentimento expurgado da gente fosse uma dívida, algo a ser quitado pelo resto do mundo. Ele nem ao menos valorizado é. Chamam de arte o bonito, o que reluz nos olhos, cintila pra quem quer ver. Essa é a definição de arte, e por consequência, quem faz o polimento, o artista. Expressar-se naturalmente também não deve dar-lhe o nome, preciso dizer. Não temos que alcançar a capacidade de verbalizar ou jogar o sentimento pra fora de algum jeito. O engenho da cabeça, a lógica e a compaixão, a complacência: tudo isso está em nós. De poeta todo mundo tem em si, de louco, de covarde, vilão. E não há o que coloque nomes nisso tudo, ora. Somos o que conseguimos construir desse monte de peça, retalho de humanidade moldada na gente; somos o que sobra do vendaval, do que os outros levam e carregam de nós pra longe daqui. Se dou meu jeito de rasgar o meu amor para fora de mim, isso não me é mérito, audácia nenhuma-- é necessidade. Se explico, desconstruo, disserto dum jeito científico e polido, é tudo que eu sei e devo fazer. A gente é carne, é reflexo, é visão turva dum míope que ainda torce o olho pra definir o que vê. A gente é a beleza que encontra em si e tem a ousadia de botar pra fora, nem que só no batente da porta. É o que veem e amam na gente, querem mostrar, só isso. Se amar é arte, somos todos falidos que insistem em morrer no bar com a última gota da cachaça e da saudade duma paixão. Chega, isso é consciência demais pra mim: deixa eu acreditar que tem jeito, que meus rabiscos vão salvar o mundo. Que nele ainda me escondo e mudo algo, embelezo sei lá como. A inocência absoluta, essa sim é arte pra nós. Que maravilhoso sabermos o quão perto da inexistência ela já está.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 08/11/2014
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