Perpetuação

E eu sei que eu posso ficar aqui o dia todo, só falando. Só dando meu jeito falho, torto e difuso de botar para fora esse monte de coisa quase que perpetuada já em mim. Também sei que você não irá escutar. Dê-me uma platéia, um palco; dê-me sorrisos e aplausos, dê-me gente faminta de coisa que reluz, de palavras bonitas: eu as possuo num piscar de olhos. Mas contigo não, eu sei disso. Contigo é um inferno, um fim a cada palavra que eu ouso deixar escapar de meus lábios. Cada toque, cada gosto. Cada novidade que aparece nesse caminho todo errado, todo cheio de paisagem que me chama para conhecer. Eu não vou, confie. Enquanto essa ardência estiver por aqui, serei devota ao que ela pode fazer por mim; mesmo que tu não mereças uma fração do que carrego comigo, já é tudo teu há muito tempo. No momento em que deixei o suspiro ser mais profundo e veio tua voz, teu ar ao meu redor e enclausurou-me nessa armadilha. Porquê diabos continuo aqui, então? É muito simples: é nessa tua jaula que encontro toda a liberdade que jamais possa precisar. É no segundo de dor em que ouso pedir-lhe para deixar-me respirar, é no riso que solta-se sem meu consentimento, no olhar sem pretensão que entrega-me sem direito de defesa. Tu és o pior tipo de amante, de gente que pode-se encontrar: tu queres nada além do calor que acolhe tua pele e não a deixa morrer. E eu posso dizer o quanto quiser que nada disso és para ti, mas a verdade nós já sabemos há muito tempo-- o frio eu aguento. Se estou aqui, com todas as feridas abertas e gritos constantes entre as paredes, é para que ouças-me agora. Que dê-me um instante de socorro, de fôlego, de paz. Que teu caos venha e carregue-me, não permita que minha própria agada dê o maldito golpe final. Eu não quero morrer pela beleza de minha carne, não há poesia nisso. Eu quero o fim pelo que tu me dares sem nem se importar, eu quero toda a humanidade arrastada que tu despertas em mim.