Abnegação

Foi tudo tão estranho como aconteceu. Parece uma bala perdida, um golpe que nos pega desavisados num espaço de trégua; não há aviso, sinal, nada. De repente, algo vem e te puxa pelo braço, te arrasta para esse caos.

Eu nem lembro mais o que me veio em mente quando lhe conheci. Quando tua imagem se projetou diante de mim pela primeira vez, quando finalmente gravei teu rosto comigo. Ele era tão difuso no início. Ainda é, para falar a verdade; ainda me cega, me confunde, faz-me perder nas tuas linhas, teus traços todos desenhados que tens. É insano só de pensar. Pensar que a tua figura cruzou assim com a minha. Que de todas as vozes, todos os toques, é de ti que vem todo esse ópio, essa cura e ruína que desafia minha pele a cada instante. Eu poderia amar qualquer outro que invadisse meu reflexo naquela hora, mas veio você.

E eu nunca entenderei o porquê disso. Contigo, todas essas dores, esse gosto amargo perdurando na minha boca depois que tu levas teu doce daqui. Da frieza que sinto em meus braços, em todo meu redor, tudo que me envolve. Toda a agonia de ter, só por um momento, beleza feito a sua em minhas mãos e ter de deixá-la ir. Deixar-lhe, expulsar-lhe daqui para meu próprio bem, para prolongar a sobrevivência.

Apenas volte. Vá-te embora daqui por hoje e deixe-me suspirar o tão fundo quanto possível mais uma vez. Deixe-me recuperar o menor vestígio de humanidade que existe em mim, deixe-me achar essa tal força para caminhar sem tua sombra ao meu lado. Volte e corra comigo, assista-me pairar sobre tudo isso, jamais segure-me neste chão. Teu sabor beira a divindade, mas a abstinência obriga-me à devoção. E isso não vale paixão alguma-- talvez o amor sim. Mas essa resposta eu não posso pedir agora, não. Agora cabe a mim apenas caminhar, lembrar do quão livre é a solidão: contanto que ela seja passageira, eu já não tenho mais pelo que pedir.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 30/11/2014
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