Escudos

Essa imagem toda já não me faz mais sentido algum. Eu não sou isso que vejo, que lembro, que costumava entender-me como pessoa. Sou algo totalmente novo, desmitificado, desafiado pelas cores opacas dessas velhas quatro paredes. Sou a indefinição maravilhosa que sinto nos momentos em que a sanidade dá-me algum descanso. Que alívio isso é! Sem perguntas, medos, cuidados, eu me jogo na minimalidade preciosa do instante e dele faço o que puder, o que tenho em mãos para moldar, correr, fugir. Chega desse orgulho falso de gritar o quão valiosa é a discrição, eu quero mais é a vergonha. A surdida já deu-me tudo que tinha consigo, todas suas riquezas e lições demagógicas, eu quero agora é a sujeira. O fim, o desmaio, o raio partindo-me ao meio e desmontando todo esse maldito edifício de certezas superficiais. Extraia de mim todo o horror, toda a poesia, toda cor e o lodo, o sangue que ainda pode correr pelas minhas veias. De lá vem a verdade, só sei disso. O resto agora é artifício, escudo, pretexto-- me dê todo teu prazer e vontade, enterre a desgraça da lembrança em toda sua pureza. Que o fogo nos leve e apenas consigamos deixar as cinzas serem varridas pelo vento, deixá-lo carregar-nos para outro horizonte que não repita aquilo que já estamos tão cansados de ouvir.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 25/12/2014
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