Heterogêneo

Ela olhava pros cantos dum jeito estranho. Parecia como quem queria analisar alguma coisa, sabe-se lá o quê. Era prepotente, arrogante, bem assim. Daquelas que poderia deixar o cigarro barato pendurado na boca encostada no buro do beco só pra fazer charme. Nem precisava. O que tinha de belo em si, idiota, escondia. Cruzava as pernas em ocasiões formais, jogava o cabelo na cara. Pintava os olhos por demais e contraía os lábios por medo de deixar escapar alguma palavra perdida por entre seus dentes.

Amava de tudo, tudo que via, encostava, sentia. E isso beirava o sufoco completo. Prendia-se, então. Fingia ter nada nunca de novo pra dizer, não pintava as unhas de cores berrantes. Encantava-se com a miséria que deixava entrar em seu mundo, corria pra todos os cantos de dentro de si. Berrava, arrancava os cabelos. Arranhava as coxas finas nas horas de raiva, perdia toda sua cor forte de tão roxa, rosa, vermelha que deixava suas bochechas de tanto riso, tanto desespero paralelo. Perdia-se nisso o tempo todo, não em si. De si sabia de tudo, todos os codinomes, todos os enigmas e máscaras, rótulos pra seja qual fosse a necessidade de mostra-se. Perdia-se era nos outros, isso sim.

No que jogavam aos teus pés sem nem saberem, nas rosas sem cor em sua calçada, na chuva fina iluminada pelo poste no começo da rua. Nem havia amanhecido, sentia-se desperta. Corria para cima, subia com tudo. Ficava sem fôlego, sempre procurava a lua pálida no céu de quase manhã. Vinha o sol e ela ainda estava lá, teimosa. Estava lá o dia todo, na verdade. E vê-la era um grande prazer; o sol dourado do fim de tarde iluminando teu reflexo borrado, ah sim.

Adorava-o também. Ambas luzes, ambas discretas, etéreas. Ambas absolutamente encantadoras. Esse encanto era teu ar, tua casa-- o resto das horas arrastavam-se apenas pra só mais aquele milésimo de si estampada no céu, no chão, na parede descascada de seu quarto. Amava a imperfeição e ainda assim, fugia dela. Quando a encontrava sem tentativas, sem negação, era esse o momento-- a libertação das mil facetas forjadas e vozes forçadas pra passar alguma imagem de total fragilidade. Era esse o momento daquele sangue corrente inefável, lotado de amor em todas suas possíveis substâncias.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 02/02/2015
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