Carta Moderna

Alguém nascido em 1920 foi congelado vivo, para experiências científicas. Quando lhe foi permitido descongelar, haviam se passado 100 anos. No ano de 2020, então, acordou e queria conversar com alguém, ver como andava o mundo, mas não conseguiu encontrar um amigo sequer. Resolveu, para passar o tempo, escrever uma carta, para o caso de alguém de sua época acordar também da experiência. A carta ficou assim:

Caro Amigo

Estou aliviado de poder usar esta palavra de novo: AMIGO. No lugar e no tempo em que cheguei as pessoas até usam este termo, mas de uma forma muito casual e sem sentido, assim como o fazem com a palavra AMOR.

Desculpe-me por começar este relato já com um desabafo, mas é disso mesmo que preciso. Achei que iria encontrar por aqui um pessoal evoluído, mais consciente, mais puro de coração. Enganei-me. Eles enlouqueceram de vez. Acredite que os vejo e eles não me veem, de tão ocupados que estão. Não é apenas o trabalho, ou o estudo das crianças, muito embora haja muito que se estudar por aqui. Ocupam-se de coisas inúteis, os pobres coitados. Usam um aparelhinho que parece fazer parte de seu corpo: usam o tal de celular. Bem se vê pelo nome que já faz mesmo parte deles, está entranhado em suas células (ce-lu-lar). Com o celular eles dormem, é o celular que os acorda de manhã e lhes acompanha as refeições. Disseram que era para melhorar a comunicação, qual nada! Descobri, observando-os, que mal se falam entre si. Quando habitam na mesma casa, cada um procura um cantinho seu para conversar com outras pessoas, qualquer uma, quem quer que seja... Um não tem acesso às conversas do outro, nem os filhos mostram seus relacionamentos aos pais. Os jovens, meu amigo, continuam se apaixonando como fazíamos nós, mas raramente conhecem de perto o objeto de suas paixões. Quando o relacionamento se aprofunda, eles até se casam, se for o caso. Mas logo após a lua-de-mel já começam a procurar outras pessoas que os divirtam dentro de seus celulares. Creio que acham mais fáceis essas relações, pois quando alguém lhes fere, não há pedidos de perdão, há somente a disponibilidade de se deletar/bloquear a pessoa que lhes incomoda. Há tantos bloqueados, meu amigo... tantos deletados...um tal de se tornar invisível para não ser perturbado...E ao mesmo tempo, pasme você: pensando que estão tão escondidos de seus desafetos, expões suas tristezas mais íntimas em praça pública, através de coisas estranhas que se chamam REDES DE RELACIONAMENTOS. Não são redes que embalam, nem redes que ligam, embora tenham a intenção de ser. São redes que prendem e amarram, matando-os aos poucos uns nos corações de outros.

Assim, eles querem conseguir tudo imediatamente. Querem aprender com um click somente. Querem que se abram telas e mais telas de vida passando rapidamente diante de seus olhos tristonhos. Ninguém mais contempla o mar, ou as flores, ou os olhos de seus amantes. Nem se olham quando amam. Apenas digitam mensagens rápidas. Amar perdeu o sentido, pois se entregam ao amor de qualquer coisa vã. Amam e odeiam a mesma pessoa no mesmo dia, apenas trocando de page.

Fiquei muito triste mesmo pelos casais. Só se enxergam enquanto dura a paixão, ela dura cada vez menos. Dura até surgir um novo aplicativo. Até que um novo vício se estabeleça. Paciência? Não mais. Custa-lhes sentar na areia com os filhos, construir castelos, desenhar casinhas. Isso tudo leva muito tempo, então eles arranjam jeitos de abortar seus filhos, mesmo os nascidos. Dão a qualquer pessoa que passa em canais interativos a responsabilidade de lhes ensinar os primeiros passos da vida. Quando podem, compram-lhes brinquedos eletrônicos, compram-lhes babás cibernéticas, compram-lhes amor por moedinhas virtuais de jogos online. Qualquer coisa serve.

As famílias não ficam mais na mesma sala. As salas, amigo, estão cada vez menores. Também diminuíram as cozinhas. As mesas agora são bancadas, onde se come de frente para a parede, quando muito para um espelho. Ninguém se olha.

Os velhos estão abandonados em suas poltronas articuladas. Não podem falar muito. Ficam aliviados quando perdem a memória de vez, pois tudo de que lembram parece loucura aos netos. Ninguém conta histórias. Ninguém as quer ouvir.

Todos saem cedinho e chegam muito tarde. E quando chegam, é como se não estivessem ali. A frase “Vamos conversar?” chega a ser uma ofensa. Só os que sobraram de bom coração conversam, e ainda assim com seus psicólogos, pois logo que começam a muito falar, alguém lhes manda fazer terapia.

Meu amigo, não sei se vou te conhecer pessoalmente. Você não é daqueles que tem whatsap, não é? Eu também não tenho, estamos fora de qualquer padrão de comunicação decente que possa acontecer entre duas pessoas. E no mais, se um dia você também for descongelado, eu espero já ter saído dessa prisão, que virou o nosso mundo moderno.

Sem mais...

Seu Amigo

Denise Paredes
Enviado por Denise Paredes em 06/03/2015
Código do texto: T5160516
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