Abandono

Agora está tudo bem, eu te garanto; eu não caio mais durante a noite, eu não crio mais aqueles infinitos precipícios. Ou melhor, infinitas quedas, sim. Era um ar cortante, frio, cruel. Era uma ardência nos olhos e na garganta que vai além do que possa valer a pena descrever. Era todo um horror criado e sentido apenas por mim, e eu precisava desse perdão. Da aceitação, do repouso por entre os retalhos, os restos de tudo que dilacerei atrás duma resposta que disfarçava-se de salvação.

Como se uma palavra, uma mísera confirmação pudesse me resgatar. Como se eu precisasse de resgate, na verdade; a paz era ideia e não vontade. Era visão inalcançável apenas para manter-me procurando-a e desperdiçando minha respiração. Lá não havia realidade, não havia liberdade, era tudo prisão. Um quarto fechado, sem luz, sem frestas, sem vãos-- só o eco dos gritos nas paredes, a fantasia corroendo-me de todas as maneiras possíveis apenas pelo gosto do que poderia haver lá fora.

Essa a pior das mentiras, acreditar que tal maravilha habitava somente algo externo daqui, externo de mim. Desse-me todos os horizontes, todas as visões possíveis, eu não existira totalmente.

Foi pela voz cheia de medo, pelo toque cuidadoso, o relance do meu reflexo límpido só por um instante: lá eu abracei, eu quis e aceitei, amei e consumi o que vi. Não era mais utopia inexistente, era humanidade deliciosa e tangível. Não era mais suplício nem nada, era vontade real contornada pelos erros, rabiscos que nos compõem. Componha-me então. Agora eu já me tenho por completo, eu não quero a tua aceitação. Eu quero agora é a tua cerne indefinida para carregar e apreciar, assistir e saborear a cada momento que eu tiver essa chance.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 09/03/2015
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