Psicografia nº 14 - Início

Sinto as articulações travadas, preguiçosas para este trabalho. O corpo mole... preguiçoso de viver. Coisa estranha, tu deves dizer. Estranhíssimo, repito.

Não posso.

Não posso.

Deixar de voltar para mim depois de uma longa caminhada na noite cega, mas envolvente, seria como se fosse uma fuga. Fujo de mim assim, com tanto terror?

Você enxerga a matéria que escorre de dentro de mim feito o mel sagrado das altas montanhas geladas? Você enxerga a matéria vermelha – por que é viva? Você enxerga o que há entre mim e ti? Um espaço vazio, talvez...? Enxerga a continuidade das minhas frases, indo parar num sem-teto de insegurança? Fui abandonado aqui, no quarto escuro e frio, frio. Estou só. Nem eu mesmo me faço companhia. Está frio. Você sente? Sente? A fumaça que vem por baixo da porta? Está pegando fogo lá fora, mas aqui dentro eu sinto frio. Esta é a minha proteção armada contra o mundo externo. Este é o meu novo mundo, envolto nas trevas do quarto de paredes geladas, tudo tão gelado... que acabo tornando-me frio também.

Até que venha a aurora sonolenta, a princesa solar. Os primeiros raios entram no quarto, rasgando finamente a escuridão instalada. Meu corpo recebe as primeiras luzes da nova manhã. E parece que sou envolvido num abraço terno... O sol abraça o meu corpo, que vai se aquecendo aos poucos... As trevas vão recuando... recuando... até que acontece o ponto alto do momento: o esplendor total do rei sol majestoso. Contemplo a sua face que me sorri bem de frente. E um sorriso também se esboça em mim; sorriso interno e externo. O sol toma conta do aposento e em canto algum há mais coisa escura: tudo é luz. Sou luz. A luz se me é.

Não mais consigo me sentir. Não mais consigo me enxergar, nem ouvir. A voz que sai da minha boca se dispersa incrivelmente e se perde pelo ar. Não possuo mais cabelos, orelhas, nariz, boca, olhos. Sinto-me leve, muito leve, como jamais antes. O sentido se fez em mim também como nunca. Sinto-me mais completo que ontem. E é uma satisfação incontida que começa a nascer da mais profunda essência da qual sou constituído, que eu grito o meu grito, mas o grito gritado por mim também se desfaz no ar. Ah... a surpresa. Acho que começo a entender... E agora, numa sucção para o meio, a compreensão - antes que a coisa se complete: tudo se desfez mais uma vez, e eu fui inserido no tudo misterioso que constitui... tudo.

Rosiel Mendonça
Enviado por Rosiel Mendonça em 07/08/2007
Código do texto: T597440
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