Implacável

É impressionante como o que parece inesperado pode nos colocar em perigo e nos fazer sentir mais vivos, mais confiantes. Como quando passamos a pensar em alguém que já há muito queremos próximo e de repente, lá está! Presença constante diariamente. E ainda tem a cumplicidade quase inacreditável. Você fica quieto e o seu pensamento é materializado na sua frente. O silêncio é confortante opção. Você fala e encontra disposição em ouvir. Por que então relações assim, que seriam as melhores, são constantemente deixadas de lado?

As situações mais desafiadoras são as melhores para se entregar com todos os erros já expostos à frente. Você já sabe o que pode acontecer nos melhores e piores cenários. Você já tem até uma previsão do seu futuro. Me parece ilógico não tentar; não que a previsibilidade seja querida, mas justificativas covardes seriam eliminadas já na base da própria experiência.

Muitas coisas são pensadas para se dizer, e no momento do olho no olho tudo bagunçado é dito, como nos nossos sonhos: não existe linearidade, existe entrega. O olhar da pessoa estimada é de interesse, não pelo que você disse, não pela tentativa, mas pelo que você desejava. Sim. Isso nós percebemos. A vontade está lá e é reciprocamente manifestada, por isso devemos saber: a resposta que importa é a dada pela reação dos olhos e do corpo. Em amantes sorrisos as palavras se perdem.

Agora, teve hora de espanto. Da presença desejada não pôde acreditar que o brilho de outrora se perdera. Das diversas formas disponíveis tentou mostrá-la que quando se escolhe abrir mão de uma parte nossa, inevitavelmente se perde a integridade do conjunto. Se não poderia abraçá-la como pretendia, não imporia sua presença pelo esforço egoísta de agarrar a projeção dela forjada pela dor e desespero. Deu-lhe tempo. Afinal, era só o que ele vira naqueles últimos dias: a infeliz obsessão de desprender-se de si mesma para a satisfação de ninguém.

Uma atitude foi tomada. Assim como quando nos defrontamos com um cãozinho machucado, tentamos medicá-lo contra a sua vontade e o privamos de conviver conosco, para o seu bem e nosso próprio. Às vezes ele entende e nos permite carinho, às vezes ele morde. Ela é do segundo tipo. O tempo dela é contado por estrelas cadentes de cauda longa e dores são desejadas em íntimo. Já há muito não sabe o que uma aliança significa e lealdade não pode sustentá-la, não por ora. São Tomás de Aquino definia a confiança como sendo “uma esperança fortalecida por inabalável convicção”. Não está convicta de sua própria existência, portanto ainda não é capaz de fortalecer esperanças dignas de respeito para com ninguém. Assim, não é capaz para exercer dedicação aos seus amores. Em suas atitudes confiança não há e perdoar-se é impossível defronte a neuroses noogênicas.

Existe uma coisa importante para mencionar. Um estímulo que confirma a sua incapacidade para se ver livre dos olhares inquisidores: a retribuição. Quando se está procurando respostas é preciso além de sabedoria, espaço e tempo para fazer as perguntas certas. Quando se está disposta a passar uma fase e ver o que a espera numa próxima é preciso desvencilhar-se da covardia. E também aceitar que só é possível dar-se a quem não exige nenhum pagamento e onde afagos não são motivos de prisão.

É dito por aí uma indubitável verdade: “no topo, todo mundo quer ser uma fera, até chegar a hora de fazer o que uma fera faz”. Seguir em frente quando todos nos dizem que estamos errados é importante e desculpar-se somente após intensa reflexão. Não é qualquer um que deveria nos inquietar e autocomiseração é inaceitável. Deseja-se muito o destaque no grupo feio e seleto, escolhido por apelos sofríveis dos que dizem as mesmas futilidades; a aceitação de alguém, nessa perspectiva, é o suprassumo do ridículo e enaltece a falha no caráter dos seus pares. E por incrível que possa parecer, uma recusa, ao invés de colocar um sorriso na face de quem ousou subverter-se à desonra, consome as suas forças impondo obstáculo ao encontro da verdade. Trata-se de se deixar ser reduzido, por falta de amor, à vil condição de reflexo do mal. O que esperar portanto?

Dediquemos os nossos esforços a quem nos estima com carinho, apesar das nossas recusas. Àqueles que permanecem firmes na vontade, pelo motivo que for. Deixar de lado quem lhes inspira e busca libertar-te não é sábio. O caráter patógeno obscurece a jornada mas pode ser superado com fé. Punir-se não tem sentido quando se trata de agarrar com as duas mãos o que é bom e não deixar ir embora, nunca mais. Mas não somos anjos, somos seres incompletos buscando os pedaços por aí. Normalmente quando os achamos, recolhemos e lançamos para longe. Novamente vamos por aí... Tudo isso para tornar a dizer aos miseráveis que ao redor estão: preciso descansar.

“Heróis genuínos fazem-se desde dentro, na luta da alma pela verdade da existência. Antes de brilhar em ações espetaculares, têm de vencer a mentira interior e pagar com a solidão moral extrema, o preço da sinceridade.” Olavo de Carvalho

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MATEUS VEIGA
Enviado por MATEUS VEIGA em 24/09/2017
Reeditado em 07/07/2018
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