Sua memória é falha desde sempre

Suas mãos estão um pouco enrugadas e sua memória não é tão boa como antigamente. O azul dos olhos não é mais tão forte e ganha hoje tonalidade cor cinza, apagado talvez até mesmo triste. Será que ela está me reconhecendo? Será que ela sabe quem sou eu? Tenho eu minhas dúvidas, assim como tantos outros também deve ter. É uma pessoa tão calada, tão observadora, tão imponente.

Será que eles não lembram mais de mim? O que foi que eu fiz pra me abandonarem desse jeito? Quando eu era jovem todos estavam ao meu lado, comiam da minha comida, bebiam da minha bebida, mas agora poucos que vêm me ver. Será que eles estão vindo e indo embora e eu me esquecendo deles? Quisera eu que fosse assim. Nesse lugar me tratam bem, tenho comida na hora certa, meus remédios sempre são me dados pontualmente às sete e meia da manha. Trocam minhas roupas também, pois infelizmente nem me vestir sozinha eu consigo. Fico pensando será que o velho não é mais pessoa? Será que a gente tem prazo de validade? Parece que sim, pois depois de certa época os olhares que chegam até mim se assemelham aos de desprezo, se parecem com os de descaso. Acham que eu sou um fardo? Acham que eu sou um fardo.

Eu não sou um fardo, eu fui eu sou e eu continuarei sendo enquanto viva estiver, ou mesmo após a minha partida, uma pessoa. Uma pessoa que pensa, às vezes com um pouco de dificuldade de fazer conexões mentais, confesso, mas nem por isso menos pessoa. Se me ajudarem sou até capaz de dar alguns passos. Passos curtos, mas ainda sim passos, dentro das minhas limitações.

Eu tive filhos e nem sei onde eles estão o que eles estão fazendo. Os meus meninos que quando se machucavam vinham correndo até mim gritando: - Mamãe, mamãe! , e eu fazia um curativo, passava algum remédio, ou nem passava e num instante lá estavam eles aprontando novamente, subindo em árvores, comendo manga e tomando leite... Como eles eram danadinhos. Quando adolescentes saiam e no início até me falavam aonde iam, e até a hora que iam voltar. Eu aguardava-os aflita, sempre pensando nas hipóteses mais diversas. Tinha medo deles se perderem no mundo, deles se perderem de mim, acho que eles se perderam, pois hoje quase nunca podem vir me ver. Torço eu para que realmente não possam caso contrário a verdade não seria muito fácil para meus ouvidos e principalmente para o meu coração.

Saiba que mesmo estando eu tão abandonada, e mesmo tendo criado tantas pessoas, por mais que pudesse ficar indignada com tal situação tudo que eu mais queria era vê-los uma vez mais, reunidos, brincando debaixo das mangueiras ou brigando por causa do maior pedaço de pão. Queria vê-los com o prato na mão, com o copo de café quente do qual saía até fumaça e eles assopravam. Queria poder vê-los descalços de short curto e de camisa de botão, camisa que eu mesma fiz na minha velha máquina de costura. Minha máquina de costura! Tenho saudade dela também. Foi com ela que consegui fazer os consertos das roupas dos filhos de minhas vizinhas. Estes consertos que me garantiam uns trocos. Talvez minha máquina de costura ainda esteja em minha casa, isso se minha casa ainda estiver de pé.

Minha casa tinha um alicerce alto feito de pedra. O telhado era de telha curva e as paredes eram de “tapume”, acho que ninguém mais sabe o que é isso, mas eu sei e sei bem. A gente passava dificuldade, às vezes sentíamos até fome, falta de alguma coisa qualquer. Mas a gente tinha companhia, zelo, carinho. Não que hoje esteja eu mal cuidada, ou que tenha algo a reclamar do modo como me tratam aqueles que me fazem companhia. Mas não é a mesma coisa, eles me chamam de senhora, de dona, ou mesmo pelo nome. Tem muito tempo que eu não ouço a palavra mãe, pelo menos direcionada a mim. Às vezes escuto de longe alguém falando – Mãe, mamãe! Meu coração enche de esperança, ele dispara (ele ainda dispara), porém quando olho pra trás, não é comigo, mas com outra velhinha. Fico feliz por ela, mas triste por mim, sinto uma pontada de inveja. Não demonstro, ainda que de vez em quando deixe escorrer alguma lágrima, depressa enxugo, pego meu “tercinho” e continuo rezando.

O ser humano é cruel, e eu também fui reconheço. A gente esquece os nossos “velhos” por que temos a ilusão que seremos jovens para sempre. Doce ilusão. Agora eu já estou de partida e provavelmente poucos notarão quando eu me for, até por que as pessoas que eu convivo hoje em sua maioria provavelmente partirão quase junto comigo, diante disso só tenho mais um pedido a fazer, talvez um pedido que nunca vai ser atendido ou colocado em prática: - Por favor, se lembrem de que nem todos chegam à velhice, mas os que chegam geralmente têm a sensação de que em outra época esqueceram-se de que um dia se tornariam velhos e isso faz lembrar que todos nós, e não só os idosos têm esquecimentos e problemas de memória.

Claudemir Evangelista
Enviado por Claudemir Evangelista em 28/11/2017
Código do texto: T6184245
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