Desabafo em papel

Colocar no papel as dores da alma é tarefa no mínimo árdua, quissá impossível, mas é talvez a única via para quem só está.

Posso falar do trauma da solidão, da dor do descaso, do cansaço da pobreza, da humilhação do fracasso. Posso citar o pai que se foi em busca de aventura, da mãe que a mim não via, a avó que trocou-me pelos netos a ela dados por sua favorita, sua caçula. Mas nisso não há esclarecimento sobre a escuridão no meu ego.

A imutabilidade da desesperança, a fé na feiúra do ser humano, a concretude da minha incapacidade de amar e ser amada, traço esse, desconfio, não meu mas humano.

A medida do sucesso são as possessões, é contada em moedas por ano. Esse eu não atingi e nunca atingirei. Felicidade pra mim não passa de uma quimera; família em minha experiência é sinônimo de paradoxos onde sou a perdedora: descuido-entrega, maldade-servitude.

Sinto que toda a vida muito doei sem ame nada de volta esperar e como consequência, nada receber e agora nada restou. Estou vazia enquanto a família faminta, em seu legítimo direito, espera pelo sustento que lhes devo prover.

Não tenho mais resquício de sorrisos, lucidez, de candura a oferecer e em minha humilhante ignorância não sei como me refazer. Não tenho a quem perguntar. Não sei cultivar relacionamentos de mão-dupla. Nunca aprendi.

Queria poder viver essa vida autômata que levo desvinculada de quaisquer sentimentos ou auto-percepções; ser apenas máquina lindamente programada que sorri e abraça, encoraja e afaga nos momentos certos sem o desconforto de quem retira d’alma negativada.

Dói. Dói a todo instante. Dói com cada arremede de sorriso, dói acordada e dói quando estou dormindo o sono perturbado daquele para quem apenas restaram os pesadelos. Dói e não há com quem dividir. Dói e não há a quem revelar. Dói e lacera. Quantos litros uma alma pode sangrar?

Quantos risos serei capaz ainda de simular? Quanto de dor e tensão poderá meu corpo ainda suportar?quanto tempo ainda suportarão essas minhas encurvadas mas largas costas o peso da responsabilidade de insistir em existir?

Monique Freitas
Enviado por Monique Freitas em 23/03/2019
Código do texto: T6605286
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.