CÁLICE

Talvez você não saiba, nem nunca me leia, mas eu contei nos dedos e por duzentas e trinta e oito vezes, quis te ligar. Só para ouvir sua voz. E isso tudo só no dia de tua partida. Eu percebi, da forma mais estranha, que minha entrega a você foi tamanha que, assim que não te encontrei mais por aqui, também não sabia mais quem eu era. Ou como eu poderia, ou deveria, seguir.

Eu não me orgulho, Bee. Não mesmo. E na verdade, mais que partir – como fizeram todos os outros que já cruzaram nossos caminhos –, dói saber que você me pediu para que – dessa vez – eu fosse. “Por favor, vá... Não seja assim tão egoísta, amor. Não agora, no nosso fim. Eu amo você, mesmo. Mas vá...”. Eu nunca entendi muito bem que raio de amor era esse em que se diz amar, mas se abre mão. Quando o assunto era você, eu sempre fiz tanta questão que abri mão de tudo, até de mim mesmo, só para te manter por perto e não te ver sofrer.

Te lembra de como eu falava sobre os livros que escrevi e que sabidamente ninguém leria? E de como escrever foi a alternativa que encontrei para superar meus momentos difíceis? Ou ainda de como eu te falava sobre Alice, aquele antigo amor que me fez querer pôr o lápis no papel pela primeira vez? E que, talvez por isso, você sentia tanto ciúmes. Você se lembra disso, meu bem? É, pois bem... Toda dor que pus para fora algum dia não se compara ao que senti quando te vi me pedindo para que saísse de sua vida. Tão fria, tão decidida, tão dura, tão... Tão sem amor. Tão longe de ser a pessoa que eu amei por tanto tempo.

Eu fiz o meu melhor, Bee. E sei que não foi e nunca será o suficiente para você. Você – mesmo que, por muitas vezes, tenha sido de menos – esperava sempre que eu fosse mais (demais). Muito mais do que eu poderia ou saberia fazê-lo. É por isso que eu estou morto por dentro. Como me disse Martim quando pegou seu violão: beba, meu amigo... Pode deixar que hoje o som fica por minha conta. E ainda bem, Bee. Você sabe que eu nunca conseguiria soltar um único ‘a’ no tom certo com a voz embargada. E enquanto Martim tocava e o bar dançava suas músicas, eu punha peito à fora, com vazão ocular, todas as dores do mundo.

Um gole, uma lembrança. E você me dizia coisas tão bonitas sobre sua falta de tempo para ser a pessoa que eu esperava e merecia. Você se lembra, amor? Tudo isso só para maquiar a verdade de que eu nunca fui tão bom assim para você e você já havia percebido. I’m not good enough and I already knew it. E assim se foi a primeira garrafa.

De vez em sempre, tudo o que eu queria era ouvir sua voz. Não me jurando amor, creio que nosso tempo já passou. Queria ouvir-te falar sobre as besteiras mundanas, meu bem. Como quando nos deitávamos na nossa – agora, sua – cama tarde da noite, só para falar sobre a existência dos planos divinos e talvez um pouco da vida extraterrestre. Você me disse tanto sobre seu sonho de nos casarmos. E lembro bem do quanto você também me dizia não ver a hora de entrar de branco e me ver no altar. Tudo isso uma semana antes do fim. Onde você foi parar, Bee? Eu já nem te conheço mais. E isso me maltrata todo santo dia.

O mundo anda – por completo – atrapalhado. O verde das árvores pretejou e o azul do céu, por sua vez, nunca foi tão cinza assim. Há quem diga ser culpa da poluição humana ou de qualquer outra reação química ainda não decifrada pelos bons cientistas e astrônomos... Outros acham que o veredito final está para chegar (e eu sei que você também acredita nisso). Você lembra de quando me disse, uma semana antes do fim - quando contava de como os buquês alaranjados preenchiam tão bem nosso altar - que se o mundo acabasse, você morreria feliz por saber que teve a sorte de morrer ao lado do amor da sua vida? Pois é, meu amor... No fim, tenho certeza de que nada disso é verdade - fui eu quem morri, mas você segue viva - e a poluição humana ou o juízo final não são capazes de causar tanta dor. Tudo é culpa do teu fim.

Eu acreditei piamente que era para ser com você, Bee. Eu acreditei em ti de olhos fechados. Segurei na sua mão, mesmo com tantos problemas, para caminharmos lado a lado. Eu te prometi companheirismo. E você disse querê-lo, mas vejo que não pode fazê-lo em momento algum. Eu confie em você como se você soubesse tudo da vida e quisesse me levar contigo como eu queria te levar comigo. E como poderia ser diferente, Bee? Como? Como poderia uma mulher tão mais velha e madura só querer brincar de amar? Como pode alguém que quer conhecer o amor, conhecê-lo e não querê-lo? É claro que eu não poderia saber. Eu não podia prever, não podia imaginar, mas aprendi do jeito mais doído que os criativos não morrem de surpresas. Nunca mais ouso confiar em alguém como confiei em ti. Sua ida trouxe morte: hoje eu morri por dentro.

Você encheu o peito e me disse que eu não era mais tão feliz como quando me conheceu e que o brilho dos meus olhos até diminuiu. Como se justificasse qualquer ato o fato de o passado ser diferente do presente. Como se nós fôssemos tão bons que não poderia existir um brilho eterno em nossas mentes sem lembranças. Você acreditou em meias verdades que criou para justificar o injustificável e se foi, sem olhar para trás. Olha, meu bem, se te preocupavas a diminuição do brilho em meus olhos, deverias me ver hoje. Desde que você se foi, não há um único resquício de brilho; não há vida, amor.

Meu bem, como eu mesmo notei, eu já não sei escrever mais com coerência. E o que faço agora chega a me causar nojo. Veja, querida, como nada combinada com nada. Como nada expele a doer que fez do meu peito moradia. Creio eu que chegou a hora de tentar de novo. E não digo sobre nós, tampouco sobre o amor – estes, de fato, morreram em mim, acompanhando os passos de minha fúnebre salsa –, mas talvez seja tempo de me recomeçar. Sozinho. Renascer, enfim.

Acho que ter tanta dor para uma vazão tão pequena quanto a ponta de um mísero lápis – que insiste em rabiscar baboseiras como esta – justifica minhas incongruências gramaticais e é talvez por isso que chegou a hora de dar um novo passo. Como um cálice. Quase como o que você me deu ao partir no seu golpe sem golpes... Como um cálice bento de dor. Mas eu não me calo. Não mais.