O circo de um homem só

Foi numa segunda-feira de inverno quando, sorrindo aliviado, notei que, sem fazer muito esforço, eu não conseguia mais lembrar do tom da sua voz ao me dizer “eu te amo”. E você talvez nem entenda, mas isso diz muito de alguém com ouvido absoluto. Significava dizer, quase como uma luz no fim do túnel, que talvez você não sobrevivesse ao filtro do tempo em minha memória. Estaria mentindo se dissesse que eu não me lembro da campainha de nossa casa tocando em sol bemol ou ainda da polifonia da tua cafeteira apitando como se em si sustenido, mas do tom do teu “eu te amo” eu realmente não me lembro.

Mesmo tentando te apagar de tudo; mesmo decretando à minha família que seu nome tornou-se aqui impronunciável; mesmo jogando fora todos os retratos, as cartas e os enfeites; mesmo fingindo desconhecer por completo a rota de onde morávamos, parece-me que a vida, maldosa que só, faz questão de me lembrar você de pouco em pouco. Todo dia. Mal sabes que eu, depois de tanto te relembrar sozinho, quase pareço-me indiferente às provocações do mundo.

Eu ouvi dizer, de você mesma, que você também não anda assim tão bem como gostaria. Como pode, meu bem? Se tua escolha é que pôs fim ao nosso amor, o que te faz hoje descontente? Tua decisão e frieza eram tão certas, não? Parece-me que tuas tentativas falhas de retorno são, outra vez, uma espécie de promessa de conquista pessoal: quase como se, por puro deleite teu, tu quisesses provar para ti mesma que, depois de tudo, ainda me tens nas mãos para que eu cumpra com teus desejos. Dessa vez, eu sei, você perdeu.

Você me disse que me olhar acordando pela manhã te trazia no peito a mesma lúdica sensação de quando se lembrava do seu saudoso avô Pedro abrindo as janelas do quarto nas manhãs de natal. E que isso te revivia toda aquela ânsia pelos presentes que te viriam. Eu achei que isso era o bastante para te manter por perto pelos próximos trinta ou quarenta anos, mas entendi, no fim, que me ver ali era algo muito mais próximo dos fenômenos de bioluminescência – ou qualquer efêmero espetáculo pirotécnico – do que propriamente de um plano seu para o futuro.

Meu bem, sempre tive a sensação de que falar do que sentia era um bom motivo de riso para você. No começo, eu acreditava que você entendia o que eu dizia e, por isso, achava graça em ver o tanto de amor que tinha você como objeto. E era por isso que você me sorria de volta. Só depois é que eu pude entender que você gostava de ouvir sobre amor porque – sabendo que você não sentia o mesmo – isso te dava uma sensação de superioridade, como se tudo não passasse de uma piada rápida para os teus ouvidos. Eu era, pois, a tua piada no exílio.

Você sabe que a tua sina por espetáculos circenses sempre causou certa estranheza aos olhos da normalidade, mas eu nunca te julguei por isso e nem poderia. Mesmo sem entender, eu respeitei e pro teu deleite, eu preferi dominar a arte dos malabares, aprendi a andar em cordas bambas e até te fiz as mais tolas palhaçadas que eu pude imaginar. Tudo porque o que eu mais queria era te ver feliz. Foi assim que eu entendi que o circo de um homem só era eu e que meu amor por você era - e em tuas memórias, sempre será - seu momento de lazer e de mera descontração. Não como quem vem, ama e se aconchega, mas como quem chega pra visitar, usa e vai embora.

um poeta da noite
Enviado por um poeta da noite em 14/07/2020
Reeditado em 05/10/2020
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