Ben

Vai entender, Ben, o que é que faz a Terra girar, mas manter a gente parado olhando as estrelas correndo no céu nessa noite tão fria.

Me parece que, como te dizia mamãe, é tudo mesmo uma questão de pontos de referência. Mamãe gostava tanto de você, Ben. E eu achei que isso era tudo. E que bastaria. Ela te tratou como uma filha perdida que só apareceu aos trinta e você bem sabe disso. Ela sofreu tanto com a tua partida.

Não vou negar, Ben, que os caminhos de ida e volta do trabalho, a condução lotada nas noites de chuva, até mesmo o cansaço nos pés... Tudo era facilmente suportado quando vivia em mim a certeza de que te veria antes de deitar. Os esforços, Ben, eram justificados.

Eu consegui planejar todo um futuro, Ben. E pra mim, isso diz muito. Senti que, do teu lado, toda aresta não aparada me sugeria algum detalhe divino. Logo pra mim, nascido e crescido sem metafísicas. Você foi meu ponto de referência mais intenso de que o mundo era sim algo metafísico e nada mais certeiro do que as lagartas virando borboletas para comprovar isso. Quer dizer, você consegue pensar em algo mais divino do que a própria natureza, Ben?

Talvez nossas naturezas se amaram, mas não é só de amor que vive a vida, Ben. E olha, que pena... Queria eu não precisar guardar, nas caixas de lembranças da vida, os planos que fiz pra nós. A casa na praia e os dez cachorros ou, sei lá, a ideia de sair do país e tentar a sorte: tudo muito bem encaixotado, eu sei. Ben, me diz: onde foi que você nos guardou?

Veja, benzinho, o que a vida - mesquinha que só - nos fez: entreguei-te ao mundo sem saber que, ao fazê-lo, abria mão também de toda minha felicidade. E não é que, se soubesse, eu não o faria, mas queria tê-lo sabido antes de dar-te ao mundo. Assim, talvez, guardaria com mais zelo nossa despedida. Eu só não soube, Ben, como amar. Eu nunca soube muito bem, mas isso você sabe melhor do que ninguém.

Quem sabe, Ben, o que a vida preparou para nós? Será que o acaso ainda nos trará um reencontro? Não que te queira no presente - o tempo, com esse jeito impiedoso e peculiar, te fez morar no livro inacessível dos sentimentos do passado -, mas no futuro? Do futuro, por óbvio, eu não sei, mas acho que, daqui cinco ou dez anos, talvez eu não me importe em te conhecer pela primeira vez de novo.

um poeta da noite
Enviado por um poeta da noite em 17/07/2020
Reeditado em 17/07/2020
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