Do dia do seu arrependimento

Eu te comprei um livro! - você me disse.

Ele não é vermelho. - eu te respondi.

Não é vermelho, mas é muito bom! - você voltou.

Talvez eu leia algum dia. - eu disse.

Esta foi uma das últimas conversas que tivemos. E agora, eu - que nunca li um livro pela capa -, quando revisito nosso passado, acho que entendo que nós não íamos bem há muito tempo ou que, talvez, vermelho nunca tenho sido a nossa cor.

Você foi em casa e entregou o livro para minha mãe. Disse a ela que era pra mim o livro grifado. Na contracapa, um punhado de cartas que me escreveu, mas preferiu uma hora melhor para me entregar. A hora nunca chegou. E você entendeu que o depois, as vezes, não existe. Que depois o amor pode acabar; que depois a saudade pode não doer e, acostumado que só, a gente deixa de lembrar; que depois o museu - que eu tanto queria conhecer - pode estar fechado para reforma e eventualmente nunca mais abrir; que o amor se grita na hora que se sente porque depois... Depois talvez seja tarde demais.

Eu nunca li o livro e passados alguns meses, eu o deixei - quase que embalado da mesma forma - na portaria do seu prédio, mas as cartas... As cartas eu guardei. Só não tive coragem de ler.

Depois do fim, não nos falamos mais. Preferimos assim. E ainda lembro de você dizendo não haver outro jeito de terminar senão manter a distância. Mas com a vida a gente não brinca, meu bem. E foi ao acaso que, anos mais tarde, eu te encontrei. Naquele nosso estranho reencontro. Como se a vida, colocando-nos no mesmo lugar e hora, quisesse nos mostrar algo muito maior. Sem metafísicas. A vida como matéria e nós como meros aprendizes de alguma coisa dada à evolução espiritual. Você sorriu ao me ver e eu também. Um abraço demorado - como você bem pontuou - entre nós, principalmente em se considerando nossas condições de fim. Um momento de estranheza porque ali não éramos mais os velhos amantes, mas também já não éramos mais os recém separados. Nós éramos, para nós, apenas novos desconhecidos que tentavam se reconhecer. E nem toda a felicidade do mundo conseguiu te fazer explicar a sensação de me encontrar.

Alguns dias depois, sem qualquer contato posterior, você me liga. Disse que não era justo consigo mesma, dessa vez, calar a verdade e eu entendi que, enfim, chegou o dia do teu arrependimento. Você me explicou do sol, da volatilidade do mercúrio - quando em condições normais de temperatura e pressão - e me perguntou alguma coisa sobre meditação. No meu momento mais desprevenido, me disse de como sentia falta de nós. De como minha voz te trouxe paz e afastou todo um aperto que você sentia há muito tempo. De como o meu abraço - longo, para dois desconhecidos - foi gostoso e aconchegante. E de como, mesmo depois de conhecer tantas outras, é da minha forma de amar que você acha graça.

Eu não vou mentir só para sair por cima ou tentar ganhar essa guerra. Veja, meu bem, que nesta guerra do amor, quando um perde, ninguém ganha. E de certa forma me fez feliz saber que, mesmo depois de tanto tempo, ainda existe um pedaço de você que me faz lembrar a pessoa que eu tanto amei. Mas os tempos são outros e hoje, a saudade não me dói mais; hoje, faz três anos que aquele museu fechou e pelo menos um que meu amor morreu. O seu depois, meu bem, não chegou.

um poeta da noite
Enviado por um poeta da noite em 10/12/2020
Reeditado em 13/12/2021
Código do texto: T7132310
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