REAPRESENTAR

Eu vejo na praça, no meio do jardim, crianças brincando com cavalos de pau e espadas feitas de garrafas pet zunindo ao vento. Há um rio imaginário que passa entre o escorregador e o pula-pula. Entre a ilusão do relinchar do cavalo simbólico e as onomatopeias de golpes de espadas e socos, pessoas caminham na praça e o sonho não para. As crianças caem na areia sorrido, levantam, sacodem a poeira, e sem dizer uma única palavra começam uma nova fábula. Ali aconteceu uma batalha monumental, mas não houve mortes ou assassinatos, apenas risos, abraços, vilões e heróis se misturam sem que haja uma moral da história. O bom é encontrar o amiguinho para brincar no dia seguinte, não importa se ele é preto ou branco, menina ou menino, se é rico ou pobre, naquele momento, naquela praça, a realidade está na imaginação, na abstração, no mundo visceral da intuição simbólica imaginária mais pura que o nosso corpo expressa.

Nada é real. As crianças brincam apenas. A representação da realidade não é realidade, assim como nós adultos representamos a epifania do sagrado, como a hóstia que simboliza o Cristo que não está presente fisicamente, mas na nossa imaginação. De forma monumental, isso faz as crianças serem donas do seu próprio palco, criam seus próprios personagens, recriam suas histórias enquanto o mundo procura uma resposta para tudo.

Mas, em um dia qualquer, um adulto que nunca se viu de frente à uma arte contemporânea abstrata resolve interferir na brincadeira infantil. De modo infame diz que seu filho não deve brincar com tal garoto, que aquilo não é certo, que ele não deve ser o bandido da história, pois não foi criado para isso. Não o percebe que aquilo não é um fato real, é apenas uma brincadeira lúdica. Seus olhos já tão amargurados com a representação da representação não permite que a imaginação infantil ganhe vida. O mundo lúdico da criança é arrancado como se fosse uma árvore da floresta que de tanto serem representadas viram pó e cinzas.

O adulto representa a criança, a criança imagina o adulto, o adulto representa a vida, a criança representa (apresenta) sua imaginação. E nessa ambiguidade de representar a criação, limita-se, mas também se atravessa, costura-se, transforma-se, em meio a tantas condições de ser, de não ser, contudo, sempre estar. É preciso deixar a criança livre, deixar sua imaginação fluir do âmago da alma, que seus devaneios tragam vida e que a vida de tão livre não precise ser explicada. Isso é liberdade!

Porém, nesse mundo imaginário arrancado da criança sempre há resistência, porque a imaginação infantil está em cada um de nós. Está na arte abstrata, na pintura que não é a realidade, nas nuvens que formam desenhos, na loucura sã de Cervantes, no descanso de tela do computador, no poder da criação dos sonhos que hão de vir.

Já tarde, em outro dia, eu volto à praça, vejo ela vazia, sem ninguém, como a imaginação que às vezes arrancamos da fantasia infantil. Não existem mais rios imaginários, nem espadas, nem o grito das crianças, nem mesmo o faz de conta se encontra ali. Apenas silêncio e sombras. No entanto, fico a pensar... Enquanto houver amanhã haverá crianças, enquanto houver crianças haverá imaginação, enquanto houver imaginação haverá sonhos, enquanto existir sonhos a representação da realidade sempre poderá mudar.