Sob os olhos da sociedade

Eu estou atrás da porta, o corpo revirado, amassado, pequeno, todo dobrado.

Sou uma carta gigante, chata, cheia de erros, longa demais, muito complicada. “Chega”, alguém com preguiça de ler sobre o amor ou sem coração para sentir benevolência, disse. E eu virei bolinha de papel.

Eu sou uma bolha de detergente, cansei de exterminar os restos, limpar as sujeiras e sair voando um pouquinho por ai. Não fui avisada de minha fragilidade e estourei, para sempre nada, nem cheiro, nem cor, nem transparência, nada. Tudo foi lavado, desinfetado, seco e guardado, a vida continuou.

Eu sou uma luzinha minúscula no meio da multidão, uma luzinha que pertence ao show mas sem nada especial para celebrar. Eu sou um pontinho enorme de tristeza e desespero no meio das pessoas enlouquecidas cantando “I can’t live, with or without you”.

Eu sou uma pequena voz em meio a tantas pessoas que sofrem. Ainda que pequena e com vontade de queimar, eu continuo ao menos acendendo o meu fogo e fazendo parte da expectativa.

Eu sou um emaranhado de papeis, textos inacabados e com a tinta da caneta perto de cessar, impossibilitada de terminar outra história.

Eu sou um fio de esperança, um fio de alegria, um fio de amor. Eu sou todos os fios que dormiram acalmados pelas suas mãos naquele dia da despedida, se você soubesse que sempre foi só daquele carinho que eu tanto precisava, ele não teria sido o último.

Eu sou aquele homem estranho em frente ao museu em Firenze, eu vou continuar fazendo borboletas de folhas e enchendo peitos puros de amor eterno e esperanças, para sempre eu vou ser tão estranho, surpreendente e interessante quanto o amor.

Mas eu também sou a sacola barata de roupas sem personalidade que agora guarda tudo o que quase foi, tudo o que poderia ter sido e mais a nossa borboleta de folhas amareladas, cansadas e quase virando pó, quase virando nada e se espalhando pelo mundo que é enorme demais para parar quando sofremos. Eu sou a nossa borboleta e estou quase virando nada.

Mais do que tudo, sou a garotinha assustada, sozinha, desabando, assustada com o amor, assustada com a vida, assustada com a porta trancada e a solidão. Essa mesma garotinha mal resolvida que vaga dentro de mim, como um espírito que não aceita evoluir, é a garotinha que quis se curar do medo do amor com um amor tão grande, tão grande, tão grande, que não existe. E ela ficou sem nenhum, as palavras escorreram por ela, sua alma tem muitos buracos.

Pobres criaturas belas, cuja a beleza guarda só uma garantia: Aprenda a si ver como o resto do mundo te vê e então existirá, porém sozinha, só com a visão sobre si mesma. Até as coisas mais bonitas podem apodrecer, todas elas irão murchar como flores ao tombar do dia.

A bela criatura presente ali é ela, mas que não consegue ver nada que está por vir, que ainda nem sabe para onde olhar. Só consegue ver a gaveta que se abre e a garra que a fecha. A campainha que toca. A mancha que se espalha. Os buracos por onde a água passa. O martelo e a foice. O livro assustador e o fantasma que o possui. Ela que só consegue ver o nome, apenas o nome dela. Mas o resto que está por vir ainda não pode ser visto mesmo que esteja na sua frente. É algo horrível olhar para uma pessoa e enquanto isso não ver nada.

A bela criatura presente ali, sou eu.

Lena Gomes
Enviado por Lena Gomes em 11/11/2021
Código do texto: T7383421
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