É M. blanca! (De sistematas e ecologistas e grandes biólogos).

Foi no dia 26 de outubro. Sonhei com pessoas que passaram em meu departamento. Traziam a fauna coligida num projeto. Apresentaram-me uma pequenina aranha toda branca. Sou aracnóloga. De pronto disse a família e o gênero: Misumenops.

Mas qual a espécie?

A pergunta procede:

- Como a maior parte da pesquisa em evolução, ecologia, comportamento, e praticamente todos os ramos da biologia referem-se à espécie, que é real na natureza, elegemos um indíviduo ou mais de organismos, e estes servem de referência para nomearmos o táxon espécie.

- Tal pergunta é a mais feita aos biólogas-os em suas vidas e no dia-a-dia, porque as pessoas não tem noção da diversidade que existe. É quase engraçado observar como perguntam a um mesmo biólogo-a sobre espécies de árvores, fungos, aves, insetos das 30 ordens, vermes, protistas, lesmas, serpentes, mamíferos, peixes, escorpiões, moscas e lagostas.

Em 4 anos de uma graduação em Biologia, como alguém pode saber sobre as 8,7 milhões de espécies que tem como lar o Planeta Terra?

Se o currículo da Biologia como ocorre em algumas faculdades dá pesos iguais ou às vezes até maiores à disciplinas que tratam da espécie humana em detrimento das demais 99,9%, isso tudo fica ainda mais problemático e distante da formação do biólogo como fonte de informação para a sociedade sobre a fauna e flora e microorganismos.

Apesar da revolução darwiniana, isto é, a ideia de que o homem é apenas mais uma espécie animal, a evolução humana ainda é tratada como assunto especial, e, não deveria, pois a unicidade não é característica do homem, e sim, e por definição, de todas as espécies.***

No sonho, a aflição que acompanhou minha carreira de pesquisadora ao ter que resolver de pronto a identidade de uma espécie de um animalzinho de 2-3 cm. Ah! maldita responsabilidade! Fosse eu ecologista e não taxonomista, não sofreria tanto. De minhas rigorosas observações o tempo para a resposta a esta pergunta é muito distinto se são ecologistas ou taxonomistas que as respondem.

Taxonomistas baseiam-se em inúmeros detalhes, há o conjunto de caracteres que abrangem todos da família, porém, há aqueles que caracterizam gêneros, e, finalmente os mais particulares, que às vezes estão em padrões de colorido, noutras, em detalhes anatômicos que exigem dissecção, clarificação, e análise sob aumentos maiores para aumentar a chance de correta identificação.

Uma vez, confirmei essa dificuldade num estágio que fiz no laboratório de taxonomia em Washington DC. Havia levado minha coleção para o estudioso de uma família de aranhas. Eu as havia justamente separado por todos os critérios externos visíveis possíveis, com olhos de sistemata, e, sem muita surpresa o pesquisador mostrou-me dois espécimes, morfologicamente idênticos, que eu coloquei juntos por meus critérios num mesmo gênero, e, em verdade, eles pertenciam a gêneros distintos. É comum que isso ocorra, simplesmente porque, houve na história desses animaizinhos, um fator biológico a operar: a convergência adaptativa ou evolução convergente, que favoreceu as semelhanças entre elas, e eu caí na armadilha das Linyphiidae (a família das aranhas em questão). São semelhanças que favorecem sua existência, mas não indicam qualquer parentesco, ou ancestralidade comum. Aprendi a ter ainda mais cuidado...e medo de "bater olhos" e dar um diagnóstico. Some-se a isto, o desconhecimento da tão rica e desconhecida fauna brasileira, e, como é difícil e leva tempo formar um bom sistemata. Num levantamento das aranhas da região de Botucatu, ao identificá-las com a ajuda de uma pesquisadora de uma das famílias que tinham merecido estudos específicos, encontramos varias espécies novas. O que significa que sem sistematas bem formados, adeus Biologia!

Por essas e outras, questiono e questionarei sempre um Curso de Pós Graduação, que dispensa sistematas por número de publicações insuficientes e enche o curso de outros biólogos que para atingirem esse número e status qualis “A”, dependem dos colegas sistematas alijados do PG, para identificarem sua fauna. Que contrassenso! Mesmo sendo a Biologia nunca exata, o ser humano teve que criar critérios de identificação das espécies, para se situar no mundo caótico que nos rodeia desde os primórdios. Para tanto nasceram os sistemas de classificação, e a história lindíssima disso tudo: Biologia, Ciência Única*, na qual o conceito de espécie, ainda desperta discussão e estudos.

Quanto aos ecologistas e biólogos moleculares, os primeiros, "postos durante anos à margem, iniciaram seu ressurgimento à medida que a crise ambiental do planeta era mais amplamente admitida, os outros, partiram para estudos evolucionários e contribuem sempre que encontram profissionais da sistemática para dizer-lhes os nomes dos organismos."**

Na década de 60, Edward O. Wilson sentia-se acuado nos Laboratórios biológicos, "entre os moleculares e celulares, que pareciam se multiplicar como E. coli e outros microrganismos, sempre menosprezado por sua Biologia digamos, tradicional, sonhava em ser como os colegas que estavam como curadores e professores incumbidos das Coleções em Museus, refugiados nas gavetas de espécimes e com direito a passagens aéreas para trabalho de campo no Panamá."**

Um dia ele conseguiu ser o curador de entomologia. Deveríamos conhecer a história dos grandes biólogos.

Agora, a ecologia se tornou evolucionária, isto é, ligou-se à genética e à biogeografia, está tudo bem, evoluindo!

Sei do colega Professor Francisco Assis de M. do mesmo departamento de onde vim, que se preocupa com biografias, que inspiram certamente seus jovens alunos-as. Ele me presenteou com o capitulo sobre o grande biólogo Edward, espécime raro e infelizmente extinto, estudioso das formigas e pai da sociobiologia.

Espero não sonhar mais com essas coisas e seres.

É muito bom estar longe dessa Universidade bio-métrica!

...mas se vier a sonhar novamente, vou criar coragem, e bater os olhos, e dizer bem depressa, num ato de puro atavismo: “-Essa Misumenops? É uma M. blanca! Vejam sua “cor”!

E, despreocupadamente voltarei ao "sono dos justos".

*Biologia, Ciência Única - Ernst Mayr 2006. Companhia das Letras

**Naturalista - Edward O. Wilson Trad. Leonardo Fróes. Editora Nova Fronteira 1997. Este eu recebi do Prof Francisco de Assis G de M. , que ensina biografias de grandes biólogos aos alunos-as. Obrigada Chico!

Lembro-me aqui do Prof Luiz Carlos F. e sua equipe de ex-alunos-as e alunos-as, estudiosos-as de formigas e ele, admirador desse naturalista espécie rara e infelizmente já extinta.

***Apenas mais uma espécie única - Robert Foley Edusp 1993