A romântica, o deus, o herói, os selvagens

Tudo foi consequência do que marcou determinado ponto de sua formação prematura.

Não só imagino, como suspeito, que foi na pré-adolescência antecipada dela.

Soube que o contato com fotonovelas de revistas da época, em especial uma, “Grande Hotel”*, recebiam a atenção dela muito mais que as leituras das homilias de domingo. O coração lhe chegava à boca a cada leitura, e determinou provavelmente sua ideia primeira de “amor” e as expectativas no mundo romântico!

As revistas pertenciam à tia que as assinava assiduamente, as colecionava e as emprestava à ela e irmãs. A menina absorvia cada capítulo da ficção rapidamente à noitinha ou mesmo nas tardes na hora de estudar. Nestes momentos fechava os olhos e revivia cada quadrinho, cada diálogo, até esgotar as imagens, o conteúdo, as possibilidades de transportar-se nos personagens, sendo sempre a mocinha amada, claro! O que não faria para sê-lo (amada) nem que fosse nas páginas finais?

Soube recentemente por um artigo enviado por um parente que tocou nas mesmas revistas de nossa tia, que tal folhetim surgiu em 1947, no Rio de Janeiro, e que antes de trazer fotonovelas, apresentava as histórias de amor em quadrinhos, e os casos tinham mistérios, aventuras e fantasias. De fato me recordo agora que minha preferência eram as pilhas altas daqueles quadrinhos, e os relia e não me entendi com a nova versão e parei de buscá-las. Meu período de leitura foi a partir de 1968 e creio durou cerca de 3 anos.

Algumas mocinhas daquela década de 60 tinham como disponível o livro de sucesso, consagrado pela classe média branca, de tom puritano e moralista, denominado, “A moça e seus problemas”**. Consta que essa era também a fonte de informação que ela dispunha.

A vida amorosa seguiu íngreme, porque saiu das leituras secretas romantizadas e quis atuar. E imitar a “arte”, significava viver a idealização, o amor abnegado, submisso, devotado, o amor das mocinhas da fotonovela Grande Hotel! A mãe percebeu e proibiu, porém, as sementes estavam plantadas.

Dada a ouvir palavras, frases, mesmo se murmuradas quase num silêncio, no canto da boca, e nada nunca escapava aos olhos atentos da garota... e ela seguia pistas, tentava ligar fatos, histórias, e lançava expectativas e construía sonhos.

E os amados, quer dizer, os deuses?

Ora, alternaram-se! Os sem qualquer brilho apagaram-se nas esquinas; os atravessados empunharam espadas, e a menina entrava, mas, saía sem rir e sem chorar. Na faculdade já com 17 anos, meio dos anos 70, encontrou um clima heroico, que abrangia enfim os latino-americanos cujo ideal e causa " levou os ativistas políticos tão jovens ao exílio, à tortura e à morte por contraporem-se às fórmulas incompetentes de lideranças, em gerar soluções para os problemas nacionais pela via da democracia”***. Nessa atmosfera de indignação, esforço por salvar o país e defender-se da violência, a mocinha vivenciou o que aprendeu com o pai, sobre o que era uma causa, o que era um líder e maravilhada viu que ao contrário do “deus”, um bom líder apresentava muitos predicados, tais como, inteligência emocional, capacidade de sentir empatia, compromisso em representar as ideias de sua comunidade, mantendo vivos o seu espírito e do grupo, e, para completar, líderes emprestam sua criatividade para solucionar problemas.

Nessa evolução de sentimentos, de identidades, numa trajetória que é influenciada demais pela história do próprio país, a menina cresceu, reviu seus valores, o que de fato lhe parecia consistente e se por um lado consolidou as opções políticas que trazia de casa, do pai, por outro lado, foi conhecendo aquilo que lhe fazia bem.

Certo que aprendizagens vem de vivências sobre as quais se reflete, mas é comum haverem distrações, armadilhas que nos afastam do que queremos ser e ter, porém, ajudas são benvindas, e a menina amadureceu e chegou num outro conceito: assumiu de vez sua natureza instintiva. "Essa natureza instintiva é onde residem as regiões mais ricas da psique, e onde modelos, padrões culturais, que extingam a nossa vitalidade, talentos e criatividade, devem ser evitados, bem como, aqueles que nos desanimem de buscar relacionamentos significativos e saudáveis. A busca é pela sobrevivência da alma feminina, cujo coração é leal e generoso quando encontra o homem que tem profunda tenacidade e resistência de alma, que aguenta ver os dois lados de uma mulher, porque ele os também tem: o lado humano simpático e carinhoso, e, o lado que na psicologia junguiana se chama o lado cão, ou seja, o instintivo. Cão, porque cães geram relacionamentos, transformam o mau humor em sorrisos, são lobos mais civilizados, e, resgatam ideias valiosas, superam as seduções superficiais, querem aprender ao invés de moldar ou rejeitar. Juntos, homens e mulheres selvagens podem equilibrar seus dois lados. "****

Nos percursos, a mocinha que pensou que homens eram mitos, passou a procurar heróis, que se materializavam em líderes, para sempre até hoje admirados, porque com ações reais na coletividade. Destes, passou enfim para um conhecimento mais sofisticado, embora tão antigo e legítimo sobre o comportamento do estado mais puro do humano, e ela então, se reconhece nessa última transformação, buscando viver com o objetivo da paz , o que estudiosos observaram na vida harmoniosa dos lobos: 1. Coma 2. Descanse 3. Perambule nos intervalos 4. Seja leal 5. Ame os filhos 6. Queixe-se ao luar 7. Apure os ouvidos 8. Cuide dos ossos 9. Faça amor 10. Uive sempre.

Obrigada tia Esther R. B. por ter colorido meus primeiros lampejos de amor possíveis para a época.

Obrigada Maria José F. F. por ter me indicado este que se tornou meu livro de cabeceira em 1999. Tenho saudade de nossos melhores papos e sororidade.

Obrigada Cíntia A. C., psicóloga junguiana que tem me ajudado com muita competência a voltar às minhas melhores origens.

*Revistas Grande Hotel: Editora Vecchi, 1947. Rio de Janeiro .

*Revisando os arquivos: Revista Grande Hotel. 2015. Universidade de Passo Fundo. Márcio Francisco Gerhardt. Arquivos História Regional.

**Livro sucesso nas famílias, tradução de original norte americano, na linha purista, moralista. Autor: Dr Harold Shryock

***Os anos de Chumbo – Luiz Octavio de Lima, 2020, Planeta

****Mulheres que correm com os lobos – Clarissa Pinkola Estés, 1997, Rocco