Alunos e alunas: filhos-as interessados-as e criativos-as

Mamãe, por que a aranha não cai da teia?

A pergunta, assim, do nada veio da minha filhinha de 4 anos e 8 meses, recostada na cabeceira da cama, contida no cenário que armei no meu quarto para treinar minha explanação inicial na defesa de minha tese que seria no dia seguinte. Sem outra situação possível, ela se tornou minha aluninha improvisada, que ao invés de se interessar pelos brinquedos ao redor, se interessou pela aula, e aos dez minutos do primeiro tempo como numa Assembleia estudantil encaminhou a pergunta, não sem antes levantar com vigor o bracinho e mantê-lo assim, até que surpresa e maravilhada lhe dei a palavra.

O inusitado da pergunta, tão inteligente e apropriada para uma “aluna de pós-graduação” (risos), porque sim, é raro que esta clientela se permita perguntar coisas aparentemente simples, porque nesse nível já perderam a pureza e o prazer legitimo de questionar. No entanto, crianças são puras e tem sadia curiosidade, e, se sua inteligência e integridade não são corrompidas nos lares e escolas, exalam paixão por aprender (uns por ensinar também).

Uma vez, acompanhando alunos de 7 aninhos por aí, num projeto de extensão, fiquei encantada pois apresentei as questões: a. Será que há bichinhos nestas matinhas ainda que vocês não os vejam sem que eu demonstre? E após mostra-los e devolve-los ao ambiente: b. O que estão fazendo aí? E do mais baixinho veio as respostas certíssimas, e ainda a pergunta para mim: Professora, eles tem uma história junto com as plantas? (emoji com aquela cara de assustada para simbolizar meu boníssimo espanto). Discuti com o precoce biogeógrafo um pouco dessa interação histórica! Que dia! Que genial criança daquela escola pública! Que tristeza saber que o que é público, exceto em alguns estados e municípios, não merece atenção devida. Dia gratificante, daqueles que você pensa, como a Ciência é admirável!

Um "Museu de Artrópodes" foi o tema idealizado por uma aluna e um aluno como projeto de extensão à comunidade. Emprestando seu conhecimento e senso estético à uma salinha do Jardim Botânico, que de depósito e escuridão, virou uma coisa linda e magnífica, que ficou tão bonito e educativo, que excedeu em muito a própria passagem dos autores pela Universidade. Foi bonito porque outros alunos do curso passavam a ser monitores. As visitas eram agendadas pelas escolas públicas, e era lindo de se ver as crianças de várias idades a partir do interesse pelo conteúdo, chegarem, ouvirem as explicações dos monitores e dirigirem se por um bom trecho na área do Jardim. Chegando à casinha entre bichos vivos, fixados, cartazes, grupos pequenos se dispunham em setores por assuntos. Foi um sucesso! Poucas vezes precisei substituir os monitores que estavam em aulas, e numa destas, ao invés de ler as mensagens nos cartazes, estimulei que lessem e eles imediatamente e por conta, elegeram um coleguinha, que teve muitíssima dificuldade para ler.

Mas eles foram além. Me convenceram que os alunos do curso noturno deveriam vir para a extensão. Precisávamos de botas para proteção contra serpentes e lanternas. Conseguimos os dois, incluindo a participação financeira docente.**

Nas salas de PG nunca não é incomum que se forme um conluio triste, um pacto silencioso de que perguntar é confrontar títulos, e experiências. Tem dúvidas “simples”? Procure você mesmo, não incomode quem está preocupado com um conhecimento de ponta! Isso traz atmosferas de sala de aula sem emoção, vazias do sentido do conhecimento verdadeiro. O conhecimento que surpreende é o que faz ponte com a história do homem, aquele que "desorganiza, incomoda" porque acrescenta à vida daquela criança, jovem, jovem adulto. Num país onde bolsas de estudo dadas pelos órgãos de fomento aos alunos inicialmente serviam exclusivamente para que comprassem livros, fossem ao cinema, teatro, museus, viajassem e conhecessem o seu país, servem há muito à sobrevivência desses jovens: compram comida. Então, jovens universitários ao adentrarem o castelo, evitem os trotes violentos tanto quanto o cercear de suas mentes vivas, disponíveis para a reflexão corajosa, nunca preconceituosa se possível, e transformadora da realidade do nosso país. Vocês serão a referência na comunidade: não virem as costas para o coletivo, defendam os princípios dos direitos todos, conservem o brio (como me disse ontem uma amiga que é ótima professora), tenham orgulho de sua existência. É para isso que servirá o manter-se pura-o e curiosa-o: bons questionamentos o tempo todo no espaço reservado e caro das universidades. Ao mudarem sua postura para pensadores atentos, mudarão a sala de aula, e mudarão a universidade e a sociedade.

Colegas não temamos as perguntas ou as consideremos menores! Elas engrandecem nosso trabalho, e o máximo que poderá acontecer é dizermos um leal, respeitoso e esperançoso: “não sei”, mas " iremos juntas-os atrás e retomaremos aula seguinte!" E continuem: "Vou lhes passar algumas ideias de palavras-chave, um texto, um artigo, seguimos conversando queridas-os!" Sim, porque tem que ser um ambiente fecundo, de Ciência, mas também de compromissos inadiáveis com nosso povo e soberania.

Respondi à minha bonequinha que a pergunta dela era muito, mas muito boa! Por aquela ora, pega de surpresa, achando que a banca seria somente lá na faculdade, atribuí a não queda da aranha de sua teia, à tenacidade, resistência, armação estrutural muito forte de apoio na origem, e o pisar somente na “pontinha dos pés”, de modo que o peso ficava distribuído (coisa de artrópodes como um todo) e nem danificava a teia. Ela agradeceu (não aguento essa menina!). Já sem esperança de resolver meu problema, retomei, após o tempo da intervenção dela, e, tentei prosseguir, mas a aluna estava animada e estimulada, e veio a segunda pergunta: “Mamãe, por que as aranhas são quase todas marrons e não azuis, cor de rosa, vermelhas, e, e..?” falando todas as cores. Bom, daí, já desligando o retroprojetor (anos 90), me joguei sobre ela aos beijos porque essa minha filhinha me deixou louca de paixão. Respondi que eram histórias de camuflagem de seres que gostavam de viver na terra, nas pedras, portanto, tendiam a ter a cor do local onde moravam.

Em minha última classe de PG, antes de ser convidada a sair fora, os alunos de uma disciplina bem específica, todos rapazes, estavam bem desestimulados, anestesiados, nem conversavam antes da aula. Cheios de afazeres nossos jovens adultos nessa fase, me pareciam cansados e muito apáticos. Aguentei duas aulas. Na terceira, minha timidez que é grande mas foi se tornando menor que minha vergonha de ir lá fazer de conta que estava ensinando, falando com as paredes, me obrigou a dar uma solução. Sem tempo para enfeitar um conteúdo que aliás me parecia tão belo por si, criei coragem e levei na bolsa uma camiseta vermelha que comprei um dia em Buenos Aires. Nela, Maradona desenhado com o quepe de Che. Bem na hora de entrar na sala vesti-a e comecei a aula com cara de paisagem. De repente, a pequena classe tornou-se incontrolável, pareciam adolescentes lá dos anos 77; podia identificar as palavras quase gritadas, todos falando ao mesmo tempo," futebol", "drogas", "argentinos", "Pelé". Respirei aliviada, acordaram! Entrei no círculo e por uns 10-15 minutos comecei a falar simulando disputar o discurso. Mas tomei certa hora a palavra e falei algo sobre ídolos, futebol, questionei a “inimizade” com los hermanos, falei da minha compaixão pelo tratamento que é dado aos drogados por governos que não assumem essa realidade. A aula específica começou então, bem energizada. Nesse dia discuti como seria o trabalho maior e individual que fariam como exigência da disciplina. Sabendo que brilhariam na parte técnica dado que no geral os alunos tendem a ser excelentes, e dadas as referências, foram convidados a bolar um convite (escrito, áudio, o que quisessem) que fosse suficientemente original e instigante, imaginativo, a ponto dos colegas ficarem desejosos de assistirem as apresentações que fariam. Eles brilharam! Um desenhou até a Pangeia no convite. Fiquei realizada, sei que a maioria deles também! Então, não precisa ser Qualis A, nem B, tem que vestir a "camiseta" da criatividade, tem que suar, sair cansada, exausta, e feliz!

Vai Universidade! Mostre a que veio: salve-se fazendo muita "balbúrdia"!

Balbúrdia, significa desordem, tumulto, algazarra. "Esse termo foi usado pelo "Ministro" da Educação (abril de 2019) do governo Jair Messias Bolsonaro, para justificar o corte de verbas das Universidades Federais brasileiras, iniciando pela UnB, UFF, UFBA, depois a UFJF mesmo com o Times Higher Education "em dia". No mesmo dia da entrevista exclusiva concedida ao jornal Estado, o MEC recuou da decisão de puni-las por "balburdia", e anunciou redução de verba para TODAS as instituições federais de ensino superior, sem distinção. Estudantes reagiram e criaram um movimento usando o termo balburdia para criar perfis nas redes sociais e divulgar a produção científica de suas respectivas faculdades. Estávamos entrando na Era da negação da Ciência, na perseguição de professores que nos orgulhavam tanto. Ainda neste ano, o "ministro" declarou que havia plantações extensivas de " maconha" nas nossas universidades públicas. Isto desencadeou atrito entre o MEC e a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino superior (ANDIFES). Em seguida, enfrentamos policiais nas áreas das Universidades, e, ainda, ele advogou uma mensalidade para os cursos de PG, cortou drasticamente as bolsas de PG da CAPES e anunciou o "Future-se", prevendo o fim dos concursos. Como um mal sem fim, tentou encerrar o pagamento do Toefl para o programa Sem Fronteiras e publicou portaria que restringiu a participação de cientistas brasileiros em reuniões científicas, recebendo carta da SBPC e ABC. Daí na sequencia, minimizou erros do Enem."*** Somente a organização de que um dia a Universidade já foi capaz, mudará esse sucateamento total. Avante comunidade universitária!

De uma cidadezinha do interior, não fosse a frequência à faculdade, e não sem sacrifício, eu não teria a oportunidade de profissionalização, da visão de mundo que se iniciou em casa mas se solidificou e ampliou, do conhecimento que acrescenta à história do homem. Há ali ofertas de crescimento pessoal e profissional e as aproveita quem quer e quem pode nela estar. Foi um período de intensos estudos para dar conta das disciplinas, dos estágios. Nunca experimentei qualquer droga além das aceitas plenamente pelas melhores famílias, e mesmo destas, me livrei no presente. Nada tenho contra quem experimentou.

O que será de nosso país sem Universidades assumidas pelo governo?

O que será do futuro de nossos jovens?

Quem se responsabilizará por cometer esse crime?

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* Maria Christina de Almeida, amiga desde 1986 e por toda a vida até sua morte precoce em 2018 aos 64 anos, foi colega amiga e irmã. Discutíamos muito todos os aspectos esdrúxulos das Universidades. Essas conversas serviram para que não nos sentíssemos tão isoladas em nossas impressões. Muito mais recentemente, tenho conversado sobre cidadania, política, Direito, valores humanos sobre com Heloisa A. F. L. e é muito bom.

**À Bruna querida P. R. e Elton querido que idealizaram o projeto de extensão à comunidade sobre artrópodes à salinha do Jardim Botânico. Esse projeto entrou no rol da Secretaria de Educação do Estado de SP, foi citado em livro que publicam anualmente. Implorei por carta e telefone para que saísse o nome de meus alunos, ou pelo mesmo um certificado que seria importante no mundo dos papéis. Não consegui e fiquei angustiada. O projeto estendeu-se por anos e outros atuaram com enorme dedicação: Douglas querido demais e outros.

***Artigo publicado em Noticias da Educação do Portal Terra, em 19 fev 2020 intitulada - Os ataques de Weintraub às Universidades da "balburdia".

****Vale destacar quando se reflete sobre este período pós golpe , que o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina foi vítima de perseguição implacável até cometer suicídio, em 2017. Assistam o documentário sobre o caso Cancellier financiado pelo público via Catarse, realizado pela TV GGN, intitulado "Levaram o reitor" . Assistam para que nunca mais se esqueça, para que nunca mais aconteça. https://youtu.be/6GOgdEpKp4.