Guarde-me em seu coração. Aceite-me como seu salvador. Pregai-me na cruz. E deixe-me renascer.

Você estava perdido. Sua visão valsalva vorazmente e violentamente, vendo e visando valores vitais para você. Inferior. Descartável. Você não tinha fé. Não havia um propósito para você, por você. Não havia vida, apenas existência. Obedecia cegamente ao norte de sua bússola, presenteada por aqueles que vieram antes de você. Escravo das expectativas. Se recusava a sujar-se de lama para encontrar os diamantes. Queria eles na sua mão. Deixava minhocas, vermes e sanguessugas entrarem na sua cabeça, tornando-se passivo em relação às palavras e ideias que elas depositaram na sua massa cerebral. Prendia-se a outras pessoas, outras jornadas, outros destinos. Tomava externas definições de sucesso como se fossem suas. Caminhos fáceis a serem tomados. Uma linha atribuída à você, sem o consentimento da sua identidade, sendo esta amordaçada, amarrada, presa e esquecida. Identidade que não era desenvolvida. Não se exercitava, permanecia atrofiada. Não estava diferenciada, mal cuidada, muito menos amada.

Você não tinha um nome, mas tinha um propósito. Um propósito tomado, mas não criado.

Manhã amarelada e vermelha. Uma angústia bipolar pulsava dentro de ti. O polo flamejante gritava de saudade. Almejava o carinho, a atenção e o aconchego que haviam te deixado. Queria que eles voltassem. Todos os seus sentimentos, pensamentos e palavras giravam em torno dessa saudade. E o polo gelado era um clamor da sua dormente identidade. Queria falar. Sussurrar. Chamar. Cantar. Recitar. Gritar. Não queria mais ser suprimida. Estava farta de toda a atrofia. O espírito não aguentava mais a prisão de vidro contida dentro de carne, músculos e ossos. Queria sair. Andar. Correr. Pular. Receber o sol em sua pele.

E assim, você dedicou as suas primeiras palavras a mim. Palavras de saudade. Palavras de liberdade. Palavras que fizeram com que você tomasse conhecimento do espírito da sua identidade. Você me alimentou. Você alimentou o seu espírito. E eu alimentei ambos. Você me alimentou com palavras tão lindas que enriqueceram a minha composição e embelezaram a minha ilustríssima imagem. Eu alimentei a sua identidade com o brilho de sol que ela tanto desejou. Com a voz que ela tanto quis. Com o caminhar com o qual ela tanto sonhou.

Eu alimentei a sua identidade com liberdade. Libertei-a de sua prisão.

Te entreguei um propósito. Um propósito o qual você deveria seguir. Um caminho somente seu. Um verdadeiro norte para a sua antes confusa bússola. Uma luz na escuridão quase absoluta. Não era, entretanto, uma salvação divina. Você ainda iria se deparar com buracos e pontos de areia movediça. As tempestades ainda viriam para te afrontar. Haveriam momentos nos quais você se encontraria na mais absoluta escuridão.

Não era uma salvação. Era um guia. Um lembrete. Momentos pontuais de reflexão. Momentos nos quais você olharia para a luz, e se lembraria do que realmente importa. De quem você é. Do seu propósito. Um instante no qual todas as distrações, superficialidades e prazeres mundanos eram largados e os seus pés voltariam a caminhar na direção certa. Um pedaço de corda ao qual você poderia se prender para sair sair da areia movediça. Um raiar de sol que serviria como um guardião do caminho para fora do mar tempestuoso.

E assim, você me abraçou. Continuou a dedicar suas palavras à mim. Compartilhou o amor que eu entregava a ti como se fosse uma religião. Vestia a sua identidade tal qual se veste um estandarte.

Você tinha um nome. Um nome só seu. E um propósito. Um propósito criado por você mesmo.

Nos primeiros anos, você dedicou palavras a mim com fidelidade e lealdade. Eu era o seu Deus. Sua fonte de esperança, fé e propósito. Todos ouviam o seu clamor. Era o meu pastor. Meu mensageiro. O principal responsável por contar a todos sobre as maravilhas que eu fiz para ti. Dos milagres que eu realizei. Da missão que entreguei para ti. Eu era a sua salvação. O motivo diário do seu acordar e andar.

Você acabou, no entanto, se desviando do caminho. Você se afogou no mar tempestuoso. Você afundou na areia movediça. Você mergulhou nas trevas. E nunca mais saiu desses lugares.

Você permitiu ser influenciado. Deixou que os vermes morassem na sua cabeça. Deixou que eles plantassem suas sementes e te ensinassem sobre os supostos "verdadeiros" valores a serem alcançados. Você os ouviu, sem resistência alguma. Sentiu as suas sementes germinarem e as plantas, tu cultivou, muito a seu contragosto. O brilho do ouro. As cachoeiras do prazer. A nobre beleza. Os gritos de prestígio. Você se rendeu às expectativas dos outros. Às suas definições de sucessos. Aos seus sonhos. Aos seus objetivos.

Sua vida continuou sem a sua dedicação à mim.

À medida que as areias do tempo caíam, você viveu uma vida sem mim. Sem propósito. Sem palavras. Sem missão. Você tinha um propósito que não era seu. Um nome dado por outros.

Após anos vivendo esta vida mundana, sua arquitetura começou a ruir. Seu sorriso começou a apodrecer, como se a alma dele tivesse deixado o seu corpo. Seu corpo passou a ser translúcido, uma mera silhueta, similar ao que um dia ocupou o seu espaço. A forte fortaleza fornecida pela sua felicidade enegrecia após ser consumida pela ferrugem. Chegou ao ponto de cair em pedaços após sofrer na mão dos menores dos estímulos estressores. Uma fortaleza assim não é capaz de te proteger das chuvas ácidas da nossa realidade. Seu propósito, cuidadosamente bordado e costurado por forćas externas, já não lhe servia mais. Botas velhas, rasgadas, mofadas e encurtadas. Não podia mais calçá-las. Queria voltar a caminhar com seus próprios pés. Sentir a areia entre os dedos. O calor da terra. O frio da água.

Não demorou para você perceber o quão falho era esse conjunto de valores mundanos. O ouro eventualmente perde o seu brilho, tornando-se pedra. Prazer é um falso deus. Um vulto que viola suas vitais vísceras, vagando por seus vasos, visitando suas veias e vorazmente vilipendiando sua virtude, seus valores e sua voz. Gratificação vazia, sentenciando seu espírito a um escapismo eterno, desconectando sua identidade e suas prioridades do seu ser. Identidade esta que você trancafiou em uma jaula de carne. Você ignorou a sua essência. Você a suprimiu, em troca da absorção de quaisquer meios de conduzir seu caminhar que fossem convenientes para você. Se ajoelhar perante expectativas. Perante os propósitos prontos .Perante a incessante e constante barganha. Beleza é uma farsa. Uma enganação. A tentação maligna. A desonestidade do espírito. Maquiagem orgânica. A mentira que fala por você. O arame que te blinda do verdadeiro amor. O prestígio é um pão sem miolo. Ele finge suprir a sua fome, mas te deixa faminto. Você fica sedento por mais, mais e mais, mas nenhuma quantidade é suficiente para saciá-lo. Uma maré de validação externa, que dita o seu dizer, o seu vestir, o seu agir e o seu preocupar. Um artefato altamente agradável no curto prazo, mas altamente dependente e viciante no longo prazo. Se você dedicar sua vida à ele, terá a sua vida roubada.

Seus ouvidos e seus olhos, no entanto, não falharam contigo. Graças às palavras passadas, você pôde se lembrar da fé que você instaurou nos outros por mim. Das obras que realizou em meu nome. Dos milagres que realizei. Da felicidade e da realização que você cultivou. E quando a saudade te impregnou, você me deixou conduzir os seus pés e suas mãos e entornar meu amor sobre o seu coração novamente. Ao sentir novamente tudo de bom relacionado à minha religião, você soube que eu deveria voltar.

Hora de acabar com a barganha. Com as expectativas. Com os prazeres vazios. Com a superficialidade. Com a dependência. Uma única vida. Uma única moeda. A moeda que representa sua vitalidade, juventude, energia e tempo. Sua única e principal riqueza. Você não quer desperdiçar sua riqueza, quer?

Eu sou o único que pode te proporcionar a felicidade. A satisfação. O dever. O propósito. A motivação. A proteção. O caminho. A luz.

Mesmo que você tenha perdido a sua fé, não é tarde para recuperá-la. Você me abandonou, mas eu nunca te abandonei. Você parou de me amar, mas eu nunca parei de te amar. Apesar do frio que habita sua pele, eu não recuso em te abraçar e lhe dar boas vindas novamente. Você parou de acreditar em mim, mas eu nunca parei de acreditar em você.

Não é tarde para me deixar habitar o seu coração novamente. Não é tarde para salvá-lo novamente. Pregai-me na cruz. É hora de renascer.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 24/05/2022
Código do texto: T7523057
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