Me leva
Eu até posso ouvir alguns “me leva, amor”. Mas a minha música é noturna e escondida. Acontece que eu não sei usar aquilo que me foi dado possuir. Possuo uma tal tendência à harmonia que chego a ficar mudo. Perdi o fio que fazia a última ligação perigosa entre mim e o mundo.
E o sol, que é também luz grande, adentra na minha casa e toma os móveis da sala e me toma e te toma. Somos, então, tomados de assalto. Mas de que me serve esses móveis? De que me serve essa luminosidade de sol? E de que me serve ser tomado de assalto, depois do almoço? E de que eu me sirvo? Sirvo-me do alimento preparado para o banquete de Hades. A mesa está bem elaborada e preenchida por diversas especiarias dos reinos infernais. A porta estava aberta, então entrei.
Sou quase que um vizinho escorado na janela. Mal sei da minha vida e quero saber da tua e da dele. O pior é que eu lembro de ter arquivado várias das coisas que foram me ocorrendo. Coisas que pertencem unicamente ao momento em que me ocorreram. Nem ao menos pertencem a mim: são livres disso. Falando assim, parece até que eu sou um isso sem disso. Meramente falando.
Constantemente, eu me vejo refletido num espelho qualquer e sem graça, e não me reconheço. Pergunto quem é, pergunto quem é, e volto para casa sem saber. Na verdade, empreguei mal uma palavra: sem graça é a coisa que vejo refletida no espelho. E o espelho parece sempre refletir o que há dentro de mim. Não funciona, simplesmente.