O homem oco

'Nós somos os homens ocos,os homens empalhados...'

T.S.Elliot

Imprescindível, ele atravessa a rua

atônito, reservado e sóbrio

o vemos diariamente com seus olhares vagos,

teria ele nas mãos uma Bíblia, um punhal, uma

porção generosa de ópio, um elixir milagroso

para amainar a descontrolada ansiedade?

Foge das horas, não olha ao redor

sabe que outros o medem, o esperam, o procuram

ele é o homem oco, senhor de seu tempo,

com olhos de silício, boca de aço,

ouro negro correndo nas veias

inalcançável, faz seus planos para o amanhã

bebe duas doses, refresca suas mãos na chuva que cai

sabe que seu corpo não durará mais que o previsível

que seu olhar se tornará cansado

que suas mãos matarão muitas vezes e, na palidez

das tragédias,

nem terão vigor para esboçar o adeus

mesmo assim ele caminha

senhor das verdades que criou, deus de seu destino

cavaleiro dos céus e das profundezas, ícaro revisitado,

ele é o homem oco, maior que anjos e demônios,

de nada necessita, de ninguém ouve nada, é soberano

dentro de sua lógica cruel e seletiva, mata a si mesmo

para continuar a perpetuar a espécie que tudo domina,

ele é o homem oco

o vemos nas esquinas, nos parlamentos, nas igrejas

percebemos que suas mãos afagam e açoitam ao mesmo

tempo,

mas ele é belo, um narciso sem piedade

trará consigo um espelho impreciso, uma bomba química,

uma criança esquálida estendendo os braços?

Inabalável, ele vem

o homem oco, o homem anúncio

o andróide com tempo determinado, o jogador,

todos eles perdem

todos perdemos sempre

teria ele nas mãos o próprio destino, o destino dos seus,

a capacidade de ser tudo mas a resignação por ser

absolutamente

nada?