Reflexo

Caminhando pela estrada no escuro da noite

A chuva me surpreendeu gelada

Não corri, não havia do que fugir, a chuva me acompanhava

No entanto ao atravessar o riacho percebi que algo estava diferente

Olhei para o regato e me vi

Por um momento eu não acreditei

Pensei que fosse uma ilusão

Algo derivado do álcool excessivo certamente

ou até mesmo da insanidade latente

Mas lá estava eu, livre, como em um sonho

Por um momento eu congelei

Ao som dos trovões e do correr das águas

a noite me surpreendeu com algo que eu não tinha mais

e eu permaneci ali, imóvel, completamente descrente

Não sei se por medo ou surpresa

Pensei que havia rompido a barreira

Finalmente atravessado para o outro lado

Pensei que estaria livre de tudo isso

Livre das correntes que me torturam

Livre das horas que não passam, dos ponteiros que não correm

Pensei que poderia voar

Pensei que poderia ser o que eu quisesse ser

Por um momento eu sorri e esse sorriso foi correspondido

Senti empatia por mim mesmo, ou talvez fosse outra pessoa

Um presságio, um Doppelgänger, uma sina ruim

Igual, porém com algo a mais, algo que eu não sentia há muito

Depois de tantos anos senti o calor da esperança novamente

A vida é assim, tudo corre como um rio revolto seguindo seu caminho

Em um piscar de olhos eu desapareci, só restou o meu reflexo

E nem isso me bastou

Mergulhei atrás de mim, pulei em busca do que vi

Pulei por uma ilusão,

pulei por uma memória, um fragmento de mim mesmo

Encontrei primeiro a escuridão, encontrei o que já tinha

Depois encontrei o meu reflexo, diferente porém igual

O velho eu, de quem há muito tempo abri mão

Minha voz clamava por mim, era hora de seguir em frente

Era hora de romper meu próprio corpo, atravessar a barreira

Dei as mãos para a escuridão e segui rio abaixo de olhos fechados

Eu sabia o que me esperava nas profundezas

Mas não estava mais sozinho, estava comigo mesmo

Estava com alguém que eu havia perdido

Não hesitei, nem quando a dor surgiu

E tudo escureceu, senti o último momento de calor e sorri

O rio virou silêncio, a cidade virou floresta, a chuva virou poça d'água

Depois veio o frio, depois veio o vazio

E eu me vi pela última vez no reflexo

E chorei de dor e júbilo,

eu estava livre!