Manhã amarga

Desperto assustado, o relógio me diz que já amanheceu

Os ponteiros ainda sussurram seu tic tac doloroso

Quase não enxergo na plena escuridão que me envolve

Abro a janela com a dificuldade de um homem que já passou da idade

Mas ainda sou jovem, tão jovem quanto deveria ser

O ranger da madeira, o calor do sol penetrando na pele pálida

A dor se espalha pelas entranhas como um milhão de farpas afiadas

O quartinho se inunda de luz e de caos

A cidade vem então me visitar com suas sarjetas, mendigos e ferrovias

Seus drogados, ricaços e pilhas de lixo

Um cheiro quase insuportável, quase familiar, que se impregna no concreto

O mundo vem me lembrar do que é real, do quanto a dor pode ser palpável

O ontem ficou na memória, o hoje ficou no passado

Já é amanhã

E eu nem vi o tempo passar

Não tive tempo de me arrepender

Não tive tempo de pensar nos erros, nos detalhes, nos desejos

E então eu bebi o amargo sabor da manhã

Afundei em mim mesmo

Como num voo que termina em um mergulho quase fatal

Quanto mais me enterro dentro de mim

Mais me perco na loucura que me consome

Tudo soa tão familiar, tão adverso, tão saboroso e tão sofrido

Sinto-me abraçado pelos cacos afiados que se espalham em silêncio pelo chão

E envolto pelo ferro gélido que se esparrama pela travessa penetrando a carne quente

Os ponteiros me dizem que já é chegado o momento

Mas eu não dou mais ouvidos para o tic tac maldito das horas

Não ouço mais o trólebus que corta o largo encardido

Nem a garota que grita seu amor num cortiço da Helvétia

Ouço apenas o caos, o descompasso, o incoerente, a insensatez alucinada das ruas

No fim sou apenas eu, sozinho, cambaleando numa viela qualquer

Uma doce profusão de pensamentos e impulsos doentios

A vida morre nos detalhes, escorre-se o sangue, concreta-se a terra e priva-se a liberdade

E eu não sou nada além de mim mesmo, numa manhã amarga de setembro

Uma confusão acinzentada de necessidades mórbidas e pequenos momentos de clareza

Escrevendo mentalmente uma história que ninguém lerá

Sobre algo que morre comigo, ali mesmo numa esquina qualquer

A espera de um ônibus que atrasou