Perséfone

I. Entardecer

De onde vejo teus olhos marejados?

Pra onde foram teus lábios cheios?

Onde estão tuas mãos de meios-termos?

Que terras pisam teus pés de pães?

As marcas que tu carregas são demais pros teus poucos anos.

E ninguém sabe quantas ainda vais carregar.

Teus cabelos eram migalhas de pão nos teus caminhos

Sementes que regastes com lágrimas.

Da última vez que meu jardim viu tuas cores,

As folhas hoje marrons nem tinham galhos

E os brotos valentes eram pequenas promessas doces

Que não conheciam a queda, a chuva e o romper - do dia e dos seus mundos inteiros.

Tuas partidas, minhas calendas, nossos tempos...

Passaram.

E continuam passando, por não terem escolha.

Mas sem tuas voltas, como vou conhecer as estações?

II. Noite

Hoje eu vou fazer mais um jantar.

E mais um chá.

E mais um outro chá que vou tomar também.

E depois deitar na minha cama desimpedida.

Ouvir o balançar das roupas secando

Num varal surpreendentemente grande

E pensar até onde vão as sombras

Depois que as luzes se apagam.

Vou pegar no sono, como aconteceu todas as outras noites.

Eu estou aqui, e preciso dormir.

E você? Precisa dormir aqui dentro?

Ou precisa dormir aí fora?

Não é como se a noite fosse ruim

Ou como se o nascer do sol tivesse o poder de fazer o outono suceder o inverno

Mas pros meus olhos cegos de ti, qualquer luz parece cura

E as estações vão se tornando assustadoramente iguais.

Eu sei que já faz tempo

Mas quanto tempo faz passar?

Nossa vida é tão curta

Pra aprendermos a deixar.

III. Alvorada

Em breve vai ser luz.

Eu estou pronto pra mais um dia sem perguntas difíceis.

E mais uma noite sem pensar.

Quantas mais?

Eu posso cansar, não posso?

Eu posso descansar, não posso?

Posso responder a essas perguntas?

Posso. Posso sim.

Eu posso tudo que conseguir

E isso é muita coisa.

Mas é menos que saber,

E muito menos que sentir.

O sol talvez não saia hoje

E talvez eu não saia amanhã

Talvez meu trabalho perdoe

Talvez o almoço seja frango.

IV. Manhã

As pessoas e seus rumos me parecem tortos

Mas desgraçadas são as retas

No melhor dos casos, um encontro e nunca mais.

Um momento depois e antes de nunca

O caminho não é longo, e é bem conhecido

Errar é mais difícil agora.

A liberdade é leve, pesa 21 gramas.

De alma ou de arsênico.

Eu chego até onde posso

Faço o que me permitem

Sorrio quando requisitado

Choro quando tenho um momento

Encarando a parede fria de azulejos

Meu reflexo parece recomposto

Volto ao trabalho dedicado

E nada atrasa no tempo que corre.

V. Meio dia

Um segundo, toca o sinal baixo do meu relógio de pulso.

O quartzo indica que quando eu levantar, já não será mais meio dia.

Eu levanto obstinado, rumo ao refeitório.

É frango.

Hoje eu tenho toda a sorte que eu poderia ter

E aproveito minha sorte para sair do refeitório.

Saúdo o vigia, um bom homem médio.

É frango.

Eu abro a caixa em cima do armário.

Já tem poeira nela - quanto tempo faz?

E jogo seu conteúdo sobre a cama.

É frango.

Seu cordão. Suas cartas. Seus olhos.

Seus lábios. Seus batons. Seus sapatos.

Seus desenhos. Suas partituras. Minha arma.

É frango.

____ silêncio.

iKuartz
Enviado por iKuartz em 21/12/2020
Código do texto: T7140826
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