dois de novembro
ainda não haviam tantos prédios
quando o caminhão estacionou
e uma família cheia de sonhos deixou
numa capital em desenvolvimento
ao redor muitas casas e pés de ameixa
do outro lado da rua tinha um campinho
os meninos jogavam bola toda tarde
e no bar todo tipo de gente passava
para beber um café ou ficar de prosa
as cartas distribuídas pela mesa
anunciavam mais uma partida imperdível
as meninas cresciam e se afobavam
para ter permissão de ir aos bailinhos
nasciam assim as primeiras paixões
para segurar na mão só com permissão
os primeiros prédios eram erguidos
os avós seguravam nos braços
os primeiros netos tanto amados
muitos natais no bar ainda viriam
até as bodas de ouro
de um casal que sempre se amou
e ao juramento no altar sempre honrou
lembranças evocadas pelos descendentes
mantêm vivos os saberes
os largos sorrisos sobrevivem ao tempo
estão nos porta-retratos
nos álbuns que contam a história
das várias gerações de uma família
que iniciou-se no brilho de um olhar
coxinha de frango com coca-cola
combinava com choco milk
e o saquinho de papel pardo
cheio daqueles doces expostos no balcão
no rádio as músicas sertanejas da moda
"Deus te abençoe", dizia vovó
e já viúva, nos tempos do apartamento
serviu um inesquecível almoço para nós
naquela fria véspera de natal
ainda posso sentir o gosto das lentilhas
quando o telefone tocava pela manhã
a oração mais linda de aniversário
nunca deixava de ser feita
aquele era o melhor presente que ela podia dar
a última oração foi nos meus 15 anos
abençoada por definição
trocaria um celular de última geração
para amanhecer com um telefonema amoroso
uma dócil voz do outro lado da linha
dedicando tempo e amor para me felicitar
hoje tenho tantos contatos
e sinto nas palavras triviais
que o cumprimento não passa de obrigação
vasos de violetas
de tempos em tempos
trocados
para preservar
o frescor
de um inesgotável
amor
nunca mais o número 5397
aparecerá no identificador de chamadas
a diferença de idade entre eles
era de treze anos e duas semanas
depois de tantos corações partidos
ela encontrou nele um porto-seguro
e por quase quarenta anos seria ele
o seu companheiro em todas as horas
lar era aquela casa de madeira verde
erguida bem lá no alto
para as chuvas de verão não alcançarem
até poucos anos atrás
a rua era toda de barro
sem sinalização, terra de ninguém
mas a residência da esquina crescia
ela trabalhava como auxiliar de enfermagem
ele tinha orgulho da farda que vestia
por conta de um acidente cedo se aposentou
ele aprendeu a amar filhos que não eram seus
os filhos dos filhos e os filhos dos netos
ela vendia geladinho para a criançada
vinte e cinco centavos de muito prazer
aos necessitados sempre socorriam
planos para um futuro feliz faziam
o relógio de parede parou
no exato instante que o coração dele
sexta-feira, sete horas da noite,
e naquela ocasião morreu também
aquela mulher que todos tanto admiravam
a força esvaiu-se num grito abafado
pelo mais caloroso dos abraços
quando ainda não era proibido abraçar
naquele percurso especial
se virasse à direita
levava ao lar de uma avó
seguindo reto
para a outra
o mercado era o ponto de referência
um dia
não viramos mais à direita
seguimos reto
hoje já não seguimos
a cama era vazia e fria sem ele
em tons desbotados a vida se desintegrava
sentido em nada mais encontrava
os passos cansados e sem rumo
queriam abrir a porta para ele voltar
se coração partido não mata
seria então uma desistência por parte dela?
o agressivo tumor a devorava
urros de dor varavam a noite
o descanso eterno era o remédio
que sua alma dia e noite clamava
na páscoa foi a última vez
que o número 5397 apareceu no identificador
naquela despedida não teria adeus
e a angústia de não saber quando seria
em caráter definitivo
o "até nunca mais"
mobilizava todos em plena bandeira vermelha
logo quando uns mais precisavam dos outros
o toque era dispensável
o medo vencia a esperança
a última semana de abril amanheceu triste
sofrendo de dores inenarráveis
a bela mulher guerreira fez
a viagem mais aguardada
para junto dos estimados pais
dos filhos que partiram cedo demais
das netinhas cujas infâncias foram ceifadas
dos irmãos que queria ter abraçado mais
do primeiro amor na flor da adolescência
que de recordação deixou mamãe
sem conhecer jamais tão bela obra
o amor e a dor foram laços que as uniram
do amor da vida
que teria chances de falhar
se o medo falasse mais alto
e ao som de alan parsons project
os eternos namorados dançam coladinhos
pelo calor humano envolvido
pelo fogo da paixão que se apagou
mas nunca matou o zelo, o respeito e o bem querer
os pais dos meu pai
se foram
e eu nunca mais
me sentei num balanço
nunca mais
toquei as correntes
enferrujadas
nunca mais
senti-me infinita
o pai da minha mãe
se foi
quatro meses antes
de segurar nos braços
sua linda menininha
que ganhou nome de rainha
em busca da felicidade
minha vó foi
às vezes voltou despedaçada
mas não esmoreceu
por correr em suas veias
o sangue de mulheres guerreiras
que não desistem das lutas
porque vencem
tanto pela determinação
quanto pelo desempenho
minha vó se foi
e distante acenou
não mais do portão
onde costumava acenar
para os visitantes
que partiam para longe
acenou de um porto distante
saudade essa
não se mata com telefonemas
ou visitas marcadas
ela é vendaval
recente demais
ela casou-se aos treze
outras brincavam de boneca
ela cuidava de bebês de verdade
que ficavam doentes, choravam,
um reino por uma noite inteira de sono
pelos quatro amores da sua vida
nunca hesitou em dizer
viveria tudo de novo, não mudaria nada,
sempre em busca de um amor arrebatador
era colega de trabalho do meu pai
e veio ser a melhor amiga da minha mãe
conhecida pelas vestimentas combinando
no dia do azul, tudo era azul,
e assim por diante
os filhos dela já eram crescidos
quando éramos nós crianças de escola
no mesmo ponto em que decidíamos
qual vó visitar
virando à direita
alguns minutos distante daqueles blocos
numa rua sem saída
destacava-se aquela linda casa
com calçadas quadradas de lajotas
e um lindo quintal
os portões abriam-se e lá vinha ela
enquanto as mulheres conversavam
as crianças exploravam o quarto de tv
onde estavam os brinquedos antigos
da filha dela que já não mais brincava
a cozinha parecia da Barbie
no sentido de organizada
num cantinho lá fora a mesa estava posta
queijos e presuntos enrolados numa travessa
um bolo ao centro
torradas, pães, manteiga, o bule de café,
o açucareiro
"sintam-se à vontade", insistia ela,
mas ninguém nunca se esquecerá daquele patê
era um agrado feito por ela
porque todos nós gostávamos de encher o pão
com colheradas generosas de patê
eu poderia procurar a receita e aventurar-me
mas duvido que o sabor seria igual
presumível que não
porque na receita dela havia um ingrediente
essencial
marcante
único
não custava dinheiro
era o amor
o meu patê simbolizaria a saudade
"eu me lembro de quando você era bebezinha,
seu pai segurava a mão do seu irmão
e você vinha no colo da sua mãe"
às vezes eu vejo aquela menina da foto
e dos meus olhos vertem lágrimas
eu gosto realmente dela
não tinha crianças da idade para brincar
mas eu nunca sentia falta quando lá estava
naquela noite de sexta-feira
papai saiu do trabalho e convidou-nos
a dar uma passadinha no mercado
não tinha nada faltando
ele insistiu e nós para lá fomos
"têm certeza de que não querem nada?",
passávamos pelos corredores
e nenhuma boneca me atraía como antes
quando uma extravagância daquelas
me renderia uma bem-vinda reprimenda
voltando para casa
docinhos e salgados pela mesa estavam arrumados
um lindo bolo também esperava ser fatiado
era uma festa-surpresa
e mamãe pensou que seria só a cesta de café-da-manhã
os amigos de meus pais chegaram
titanic passaria pela primeira vez na televisão
em duas partes
uma naquele dia
e a outra na noite seguinte
nem dei muita atenção
vovó rompeu em prantos
vindo do trabalho de ônibus até aqui
perdeu o presente de mamãe no furdunço
mas a visita dela já valia muito mais
aos poucos os amigos iam se despedindo
desejando à aniversariante felicidades mil
vovó sabia que era tarde
poderia apanhar um ônibus a algumas quadras
mas apesar de ser dezembro
o frio mais lembrava o inverno
comparado a hoje em dia
eram tempos mais seguros
mas desde que o mundo é mundo
na calada da noite esconde-se o perigo
papai não via problema em levá-la para casa
o amor nem sempre verbalizado
quase sempre é demonstrado
em atos que dizem mais do que mil poesias
o carinho
a consideração
o respeito
valores que devem permanecer
meti-me no carro e fui junto
esparramando-me no banco de trás
as luzes da noite sempre me encantaram
na quietude do sereno, o sono
adormeci em dada parte do percurso
quando acordei descobri que as rosas não falam
na linda interpretação da também saudosa
hebe camargo
as rosas não falam
e a noite guarda eternos segredos
no travesseiro também cabe saudade
e juras de amor nunca verbalizadas
tarde demais para criança estar acordada
essa amiga da minha mãe
gostava de autoajuda
e nunca se cansava de dizer
o quanto era importante
o amor-próprio
porque o tal dia especial
poderia chegar
e nada como apresentar
a melhor versão de si
os braços abrir
para surpresas gratas da vida
receber
porque ela tinha
era preciso agradecer
e preparar-se
e sonhar também
porque sonhar nunca matou ninguém
e viver sem sonhar é desperdício
de tempo
sonhos inspiram
sonhos não têm idade
são sonhos
e sonho tem a forma que você der
sonho pode ser do jeito que você quiser
não tem tamanho
nem pré-requisitos
por isso mesmo se sonha
ninguém está proibido de sonhar
no finzinho de 2012
meu pai encontrou-se com essa amiga
comentou que ela estava muito magrinha
e queria muito nos chamar
para passar uma tarde na casa dela
"vamos marcar qualquer dia desses",
aquela desculpa manjada
de quem não quer marcar nada
deixa em compasso de espera
quem talvez não disponha de tempo
para esperar
não quando o tempo
apressa despedidas
porque seria uma
"qualquer dia desses"
quando, exatamente?
quando o telefone tocar
e do outro lado da linha
alguém contar que ela se foi?
porque no dia 15 de maio de 2013
num solitário leito de hospital
o agressivo tumor no pâncreas
ceifou suas esperanças aos 60
para quem ainda tanto sonhava
de que importava a idade
se para sonhar é necessário acreditar?
acordei com o choro da minha mãe
em estado de choque fiquei
durante o dia todo
sem concentração para nada
pensava
pensava
pensava
ainda era inacreditável
mais doloroso pensar
que nem ao enterro pudemos comparecer
ela foi enterrada na cidade natal
a algumas horas de distância
e já não dava mais tempo
o dela havia expirado
as últimas homenagens eram feitas
a maioria daria as costas
e quem a amava sofreria
ela nunca soube o quanto era importante
mas toda vez que tocar estou apaixonado
vou me lembrar dela dizendo
que adorava ouvir essa música no carro
aumentar o volume
e chorar com a poesia viva dessa letra
sonhava ela com um amor assim
com um amor que jamais conheceu
com um amor que pudesse chamar de seu
encontrava e desencontrava
paixões efêmeras
jamais um par de braços que a acolhesse
o dia especial não chegou
ou talvez a conotação seja relativa
todo dia é um dia especial
quando se tem o privilégio de viver
todo dia é especial
todo dia
ao sair da cama
tudo pode acontecer
ninguém nunca sabe
até acontecer
em comum a todos os personagens
é a lembrança no dia de finados
histórias narradas no pretérito
no dia dois de novembro
dos anos seguintes à viagem
vasos de violetas são deixados
de tempos em tempos
trocados
para preservar o frescor
de um inigualável amor
de tempos em tempos
ondas de saudade invadem o peito
menos percursos a fazer
menos amigos
menos parentes de sangue
menos aniversários a lembrar
porque é sempre no dia de finados
que se reservam todas as homenagens
póstumas
flores não dadas em vida
ocupam todos os jazigos
a visita tem alguma finalidade
senão cumprir uma trivialidade?
de tempos em tempos
versos tortos sobre pessoas
que nunca viveram em versos
nascem para guardar as impressões
de quem pela vida passou
e em vão não passou
sem os pais dos meus pais
eu não poderia narrar essa história
sem os amigos que a vida aproxima
e também separa
eu não teria tantos pedaços
de meu coração
aos quatro ventos espalhados
dores que arrebentam certezas
mas a maior de todas
as incertezas
é saber
quando e quem
será o próximo contemplado
a fazer aniversário
no dia de finados.
- dois de novembro