Também no Japão, EUA, França, Itália, Espanha...
 

São descobertas em noturnas ruas
as sem cobertas, carnes vivas nuas
perdidas em algum lugar imundo
parcos lares de qualquer que seja mundo
 
Não há primeiro ou mesmo segundo
nem terceiro que esconda moribundo
pois os sem-teto gritam seu existir
desprezados em meio ao irrefletir
 
De mesquinhas carnes já apodrecidas
em burburinhos que apelidam vidas
cemitérios do solidário e amor
solitários defuntos no desamor.
 
JOSEPH SHAFAN
[poema-comentário da notícia abaixo]
 
Poemas de sem-teto anônimo causam comoção no Japão
16/03/2009 - 00h01
 

Philippe Pons [Le Monde]
Em Tóquio
Eles são cada vez mais visíveis. Mas os passantes cruzam com eles aparentemente sem vê-los. Indiferentes, constrangidos. Suas sombras furtivas, miseráveis, aqui e ali nas estações ou nos parques, lembram bruscamente a muitos de suas próprias dificuldades. Seu sofrimento parece incorpóreo. Eles não mendigam e sobrevivem dos restos da sociedade de consumo. Essa sociedade os ignora e foge deles, os sem-teto das grandes cidades japonesas. Dois mundos que andam próximos, mas fingem não se ver.

Completamente inquietante, uma voz se eleva deste mundo de "náufragos" da prosperidade. Desde o fim de 2008, o jornal "Asahi" publica poemas curtos de um autor sem-teto que permanece anônimo. E, certamente pela primeira vez, os leitores desse jornal descobrem através de suas palavras esse "povo de baixo" que, durante a noite, dorme em caixas de papelão aos pés daqueles que se apressam para não perder o último metrô.

Como outros jornais, o "Asahi" tem uma coluna poética na qual são publicados poemas do gênero clássico waka, curtos e de beleza austera e melancólica, enviados por leitores que foram selecionados por um júri. Os concursos de poemas pertencem a uma tradição milenar no Japão. E os jornais a seguiram. A julgar pelo número que cartas de incentivo que o "Asahi" recebe, os poemas desse homem miserável, da rua, emocionaram mais do que um leitor.

A canção de Gréco
"Acostumado a viver sem chaves, eu passo o ano novo. De que mais ainda preciso me desapegar?" "Esta rua se chama a rua dos filhos infiéis. Eu não tenho pais, nem filho". "O homem não vive somente de pão, mas eu passo meu dia com o pão distribuído..." Sob uma noite estrelada, essa canção de Juliette Gréco, com letras de Jacques Prévert e música de Joseph Kosma, embalou o seu sono: "Adormecendo sob um céu estrelado, escutei a canção de Gréco. Era só uma ilusão..."

O poeta anônimo assina seus textos com o pseudônimo de Koichi Koda, mas o campo "endereço" que acompanha a publicação do poema, normalmente obrigatório, comporta a simples menção: "sem". O autor provavelmente vive no bairro de Kotobuki-cho, em Yokohama, uma das vilas de albergues decadentes, uma dessas armadilhas da cidade para onde correm os sem-teto.

A letra cuidadosa e a referência à canção de Juliette Gréco (que data dos anos 1950) fazem pensar que o homem é culto e deve ter mais de 70 anos. Logo depois da publicação de seus poemas pelo "Asahi", o poeta anônimo enviou outro: "Ao ler o artigo a meu respeito, como se tratasse de alguma outra pessoa, lágrimas me vieram aos olhos".

O jornal o chamou para que se apresentasse, nem que fosse para lhe pagar a pequena remuneração que acompanha a publicação do poema. "Estou comovido com sua gentileza, mas por enquanto não tenho coragem de entrar em contato com vocês", ele respondeu.

Tradução: Lana Lim
 
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2009/03/16/ult580u3607.jhtm