coveiro

tu adentrastes

o lugar mais escuro da minha alma

caminhando lentamente em cima dos túmulos

de cada dor que enterrei

teus passos dançam no mesmo ritmo que os meus

e esse é o problema.

tu adentrastes

pelos portões mais altos

que fui capaz de construir até aqui

abristes o cadeado como se fosse capaz de pensar exatamente na mesma senha que eu

ao mesmo tempo que eu

pelas mesmas razões que eu

e esse é o problema.

tu adentrastes

com as vestimentas certas

pra sobreviver o frio insano

e o calor ardente

deste lugar

tu queima enquanto encosta minha pele

tu queima adentrando meu corpo

sugando meu gosto

como se tivesse sido feito pra teu paladar

tu congela quando sente

tu congela quando ferve

e esse é o problema.

tu adentrastes

por cima de um tapete desbotado

que talvez seja do mesmo tom de vinho do teu

desenhou um mosaico com meus respingos

enquanto comparava os que caíam dos teus braços

e que percebeu que aqueles eram os que tinham caído dos meus

tu liga os pontos entre minhas cicatrizes com a agilidade com que eu quis cobri-las

e esse é o problema.

tu adentrastes

na esquina da capela da minha alma

que é onde guarda os resquícios da minha sanidade

e que se não existisse

esse cemitério seria inabitável

escuro

opaco

e ali é onde tu não pode tocar

porque ali é a trégua da minha inconsequência

é em mim a principal barreira

que impede soterrar

e esse é o problema.

tu adentrastes

mas não pode adentrar

porque tu entende toda a dinâmica desse lugar

e aqui, seria fácil pra tu ficar

tuas madrugadas destruiriam as minhas

enquanto a gente transa às três da manhã

como se o mundo fosse acabar logo após

enquanto a gente incendeia até congelar

nossas veias costuradas

nosso sangue que derrama como lágrimas

e esse é o problema.

teu lugar poderia facilmente ser esse aqui

mas só cabe um coveiro entre nós.

Carmen Tina
Enviado por Carmen Tina em 08/08/2019
Código do texto: T6715110
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