coveiro
tu adentrastes
o lugar mais escuro da minha alma
caminhando lentamente em cima dos túmulos
de cada dor que enterrei
teus passos dançam no mesmo ritmo que os meus
e esse é o problema.
tu adentrastes
pelos portões mais altos
que fui capaz de construir até aqui
abristes o cadeado como se fosse capaz de pensar exatamente na mesma senha que eu
ao mesmo tempo que eu
pelas mesmas razões que eu
e esse é o problema.
tu adentrastes
com as vestimentas certas
pra sobreviver o frio insano
e o calor ardente
deste lugar
tu queima enquanto encosta minha pele
tu queima adentrando meu corpo
sugando meu gosto
como se tivesse sido feito pra teu paladar
tu congela quando sente
tu congela quando ferve
e esse é o problema.
tu adentrastes
por cima de um tapete desbotado
que talvez seja do mesmo tom de vinho do teu
desenhou um mosaico com meus respingos
enquanto comparava os que caíam dos teus braços
e que percebeu que aqueles eram os que tinham caído dos meus
tu liga os pontos entre minhas cicatrizes com a agilidade com que eu quis cobri-las
e esse é o problema.
tu adentrastes
na esquina da capela da minha alma
que é onde guarda os resquícios da minha sanidade
e que se não existisse
esse cemitério seria inabitável
escuro
opaco
e ali é onde tu não pode tocar
porque ali é a trégua da minha inconsequência
é em mim a principal barreira
que impede soterrar
e esse é o problema.
tu adentrastes
mas não pode adentrar
porque tu entende toda a dinâmica desse lugar
e aqui, seria fácil pra tu ficar
tuas madrugadas destruiriam as minhas
enquanto a gente transa às três da manhã
como se o mundo fosse acabar logo após
enquanto a gente incendeia até congelar
nossas veias costuradas
nosso sangue que derrama como lágrimas
e esse é o problema.
teu lugar poderia facilmente ser esse aqui
mas só cabe um coveiro entre nós.