16 poemas do livro O Retorno ao Princípio
1.
MORTE
doce irmã do sono
descanso fatal da dura vida.
liberto o espírito com o som
e a cor da morte,
desperto da ilusão
a ideia
neste puro entender
o enigma da morte,
da morte
não fantasma,
e olho-a, pela ideia,
de que a morte é libertação.
2.
descansa-se finalmente
dos atropelos
com que escreveram
aqueles que antes de morrer
nos mataram;
calha-nos isso
por sorte
na VIDA.
3.
eis o invisível monumento
da lucidez:
onde a luz acabou
reacendeu-se
a vida;
o timbre afina-se
no abrir duma janela
que antes de estar aberta
se abriu.
erguem-se do silêncio
as almas
em centrífuga abstracção.
onde
o vento
exunda a escuridão das águas
e cresce
a exumação das coisas inúteis,
há
a elevação das almas
ao infinito-além.
4.
esquiva-se a luz
nesta persistência
sombria
do afastamento;
na lúcida passagem
das pulsações,
a morte
tal perfume de estrela
ausente
visita o nascimento.
eu, noutra parte
fecho as pálpebras na misteriosa
bruma,
tu
noutro céu levante
crias de novo
a partir da espuma.
5.
naufraga-se num sono
eterno.
onde se ergue
a transparência da solidão
do espaço,
arde,
na fulgidez celeste,
longínqua chama
a despedir-se
da alma desavinda.
inaudível é a força
e estrépita!
emerge
depois, a alma
para fúlgida esfera.
6.
desprende-se
para destino enigmático,
do âmago do corpo
extenuado,
a alma sedenta de glória
noutro céu.
a barcaça da morte
atravessa
o lago escuro da noite
onde tudo acaba
e tudo começa.
exaurido
todo o tempo anterior,
refulge
prenúncio de novo dia.
7.
a substância
em maturação inclina-se
no seu propenso vagar
para a glória da morte,
e dela
em glória renasce
em novo dia.
do seu fim
acontece todo o princípio.
deslumbra-se,
do corpo que se desintegra
agora,
a alma
que se difunde no abstracto
devir.
8.
eis a transparência
da morte,
na partida e obstáculo
para novo espaço:
aqui se funde
e se transforma
em movimento.
que seja coincidente
o silêncio
e a falta dele
e que ao cair se levante
e caminhe,
mesmo que aí termine
o seu andar.
onde tudo termina
se ascenda ao princípio.
9.
desaba a fronteira
entre a vida e a morte.
convoca-nos o corpo,
matéria extinta
em claríssima ciência,
para o trânsito sucessivo
da vida
que nasce onde pára
nesse instante;
fora de nós
reinamos a partir do desavindo
corpo
que ascende ao princípio.
10.
o frio da morte
estreita o círculo
à volta do corpo
exangue.
termina a matéria!
cai em cinzas que amadurecem
para se criar do seu seio
a vida.
de vigília em vigília
parte a alma
no sopro do vento da ida
em busca
de nova torre iluminada
para ser de novo
devir.
11.
subitamente, um cristal de luz
inclina-se
sobre o fim
prestes a ser
princípio.
negra é a matéria
e clara a luz que se faz
dela.
13.
o princípio integra-se
na substância
e deixa de haver nesse instante
ausência
de corpo;
o corpo que à terra
retorna
e em pó se faz.
pó, que é princípio
antes de ser
pó.
como nas estações do ano,
inicia-se o retorno
e regressam
as coisas mais longínquas.
14.
sou teu; és o meu fim!
que mandas fazer
de mim,
senão a redução das ossadas
àquilo que de finitude
tem
a matéria em si?
mas soberano e majestoso
sou eu
além de mim
que tem tudo o que de ti
não é teu;
por isso
já ascendi ao princípio
antes de caminhar para o meu fim.
15.
que nada se perca
em memória
daquilo que fui até aqui,
depois do princípio
ser outro.
nada me derrotou!
nem moléstia ou malvadez
nem o que de sórdido
suportei
quando de mim não era eu;
nada me quebrou!
essas entranhas podres
tamanhas
sem vida nem afeição
que mais não fosse,
essa podridão
terrena existente em mim,
morreu.
16.
por isso, agora, sou o que sou!
disponho na palma da tua mão,
não dum deus qualquer
que me arreliou na vida
por nele não crer,
mas,
na palma da tua mão
serena,
divindade que não sei quem és
que nasceste do meu fim
enquanto caminhei p’ra cova,
e me fez crer que é aí
que a vida se renova
e aí se nasce
depois
erecto…
…o que fez de mim
o homem
que finalmente sou!
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Alvaro Giesta in O Retorno ao Princípio (Calçada das Letras, 2014)