DOUTOR NINGUÉM

DOUTOR NINGUÉM

IJUCKLIN CELESTINO

Meu nome é ninguém.

Não sou de família nobre.

Pouco me importa

A bobagem de não possuir

Sangue azul

E outras babaquices!

Que se danem aqueles

Que me criticam

Por eu não possuir etiqueta,

Por ser grosso,

Mal-educado, anti-social,

Não saber me vestir,

Não saber pegar

Nos talheres,

Não saber português.

Que se danem, os que me criticam!

Mas sinto mesmo,

É um prazer imenso,

Me identificar com a maioria

Da população brasileira

Que fala errado,

Confuso, arrastado:

Nós vai. A gente vamos.

Nós come. Cuma...

E tal e tal.

II

Com toda minha falta de classe,

A minha notória ignorância,

Até sorrio da subserviência,

Da bajulação, da tremenda

Estupidez, de chamarem a mim,

O ninguém, de doutor,

Só porque possuo dinheiro.

Por ironia, no Brasil,

Terra de contradições mil,

Com raras exceções,

Quem muito estuda,

Quem mais é letrado,

É quem menos dinheiro ganha.

O analfabeto rico, é doutor!

O intelectual pobre, é babaca!

III

De tanto me chamarem doutor,

Já me sinto com tal.

E estufando o peito,

Qual pavão enfeitado,

Acaricio meu ego e brado:

Sou rico! Sou poderoso!

Sou a antítese dos sábios-burros

Que se vangloriam

De possuírem cultura,

Mas se mostram incompetentes

Na hora de amealharem riqueza.

Eu, com minha falta de conhecimento,

Mas com astúcia, com manha,

Com inteligência e esperteza,

Soube ganhar muito dinheiro.

IV

Meu nome é ninguém.

Sou um doutor-ninguém,

Sem estudo,

Sem canudo,

Sem anelão

Me adornando o dedo.

Estudei

E me formei pela faculdade do mundo.

V

Eu, ninguém, sou um enigma.

Ninguém sabe donde vim,

Quem sou, como pintei no pedaço,

Como consegui ficar rico...

Mas alguém disse que eu,

Ninguém, era doutor.

E neste país, de contradições mil,

Quem tem dinheiro, é rei;

Pode compra o que quiser,

Até título de nobreza.

VI

Já fiz minha apresentação.

Sinto não poder me demorar...

Nas minhas divagações.

Deixo de lado, finais considerações,

E sem mais delongas,

Entro no meu carro,

Lamborghini Aventador

LP 700-4 Roadster,

Dou a partida, e dando vazão

Ao meu egoísmo, nem percebo

Que a plumagem da ostentação

Da grandeza é bela,

Mas a realidade da vida é feia

Com o os pés de um pavão...

Por todo canto há dor, fome, desigualdade.

Um quadro, que nenhum pintor,

Gostaria de pintá-lo.

VII

Indiferente a tudo, toco

Meu carro pra frente.

O sinal pára.

Um garoto descalço, maltrapilho,

Sujo, surge de repente,

Trazendo seu apetrecho de trabalho:

Uma garrafa contendo água

Não sei de onde,

Uma flanela e pequeno rodo...

Debruça-se sobre o para-brisa

Do meu carro,

E começa o serviço:

Joga água, passa o rodo,

E no traviar mastigado,

Que já virou um bordão:

Doutor, um dinheiro

Pelo amor de Deus!

Um trocado pra mim comprar pão!

Ao invés de eu gritar

E xingar o menino como muitos fazem,

E dizer -- que estou com pressa. Não amole!

Sorridente apanho uma nota de cinquenta

Reais e dou ao garoto que agradece:

Brigado, doutor. Deus lhe pague.

E me pagou mesmo, ao ver a alegria

Estampada no rosto do menino.

VIII

Eu, doutor-ninguém,

Sigo pela estrada,

Atento às curvas,

O pensamento me transportando

Para os bens que me são mais caros:

Minha casa com seus belíssimos moveis

Estilo Luís XV,

Quadros dos mais famosos pintores,

Meu iate, meus carrões .

Penso no meu cachorro

Pastor Alemão, Tarzan,

No meu gato Angorá, Zelão,

No meu papagaio Zico,

Que não se cansa de repetir:

Viva ao “Galinho de Quintino”!

Viva ao “Mengo”, Campeão do Mundo!

Penso com carinho,

Na minha encantadora esposa, Ester...

Penso nas curvas tentadoras

De minha amante, Soraia,

Um vulcão de mulher

Com quem logo vou estar...

Penso que minha sempre submissa,

Minha bela, e sofisticada esposa, Ester,

Pensa que estou viajando

Com o propósito de comparecer

A mais uma reunião de trabalho.

IX

Pela estrada, matutando, vou...

Pensando na minha gostosa Soraia,

Na deliciosa noite de amor

Que teremos no nosso ninho do pecado,

No velho sobrado da Graça.

O tempo passa, e nem me dou conta.

De repente me encontro,

Nos braços de minha amante

Que me recebe com beijos, abraços,

Delírios ,

Suspiros

E gemidos enlouquecidos de êxtase.

Nesta gostosa orgia,

Vai a noite, vem o dia,

Sem que percebamos...

X

Pela manhã, os felizes amantes,

Despertam extenuados

Pela intensa noite de prazer.

Soraia, sacudindo seus longos,

Negros cabelos,

Brinda-me com um sorriso tão lindo!

Capricha no seu jeitinho mais faceiro,

Pede dengosa,

Chorosa:

-- Gatinho me dê dinheiro.

Quero comprar um vestido...

Um colar de brilhantes...

Um casaco de peles.

Fito-a com ternura.

Contudo, estranho tal pedido.

-- E de pronto, pergunto:

Amor, semana passada,

Lhe dei cem mil reais.

Como gastou todo o dinheiro?

Ela faz beicinho de zangada.

-- Morzinho, tá tu duvidano da tua amada?

Não duvida deu , não!

A bufunfa que tu descolou pra eu,

Pra minha veia que vai fazer operação

De vesícula, dei.

Mais porém, se tu não tem mais

Grana, tua “neguinha, não briga não ! –

Diz ela, com carinha de choro.

Se rostinho triste, me comove.

Pego da carteira,

Pego do talão de cheques,

Emito um de meio milhão de reais

E entrego-lhe.

A gata sorrir satisfeita.

Dá-me um beijo e agradece:

-- Brigado, “Bunzunguinho”,

Tu é bom paca!

Fico encabulado,

Como sempre acontece

Na presença de minha Soraia.

-- Gatinha, o que eu não faço por você?

Ela se despede com um forte abraço,

Um caloroso beijo, e promete:

-- “Bunzunguinho”, a nossa próxima

Noite de amor, será melhor ainda!

XI

Feliz peguei a estrada, ansioso retornei à minha casa

E encontrei Ester, minha adorada esposa, que me esperava

Com beijos, abraços, e a promessa de uma maravilhosa

Noite de amor...E a inevitável pergunta:

-- Maridão, como foi sua reunião de trabalho?

Estimo que boa, tenha sido...

Com o remorso me atormentando, respondi:

-- Foi boa, Ester! Dei um duro daqueles!

Minha querida, a recatada,

A submissa esposa, Ester,

Em meio a um sorriso, exclama: Ótimo, João!

Pois minha noite ontem, foi intensa...

Enquanto você, “maridão”,

Dava duro, se empenhava

Na reunião de trabalho,

Eu, sua esposinha, trabalhava...

Como trabalhava...

Pegava no duro...

Suava,

Suspirava,

Gemia, num vai e vem frenético

Na bela cama da mansão do Doutor Ludo Patioli,

O diretor daquela multinacional italiana,

Com quem você, “maridão”,

Queria fazer negócio.

-- Veja como sou boa esposa:

Fiz tudo por amor... a você, João!