ONDE SERÁ QUE ELA MORA?

Andando a esmo, sem meta,

entre vespas e jasmins;

perco um segundo da reta

e eis que surge você.

Parece buscar sentido

nas pegadas que deixara,

mas o que passou, passara;

passo a passo, foi-se ao léu.

Eu, imaturo de tudo,

temo pessoas, lugares;

tento abreviar vielas,

e as praças devolutas,

mas dobro a calçada imune,

imaculado, incolume,

incontaminado, impune

e novamente: você.

Não fosse a dona da banca

que enfeixava as revistas,

pois desejava tiborna

mais do que utopia rasa,

buscava o caminho de casa,

sopa de aspargo e marido

pós trabalho concluído,

esbarraria em você.

Nem quis questionar a pressa;

o que havia nas sacolas;

o quanto estavas esquálida,

pensante, exígua e sem paz;

ruminei baixo "que pena"

e pus-me de volta à estrada.

Nem vi que o tempo voava -

corri pra comprar o pão.

Da mão da moça agradável,

calma e uniformizada,

três franceses, carolina,

um sírio e pouco presunto,

arrancaram-me um sorriso

automático, apressado

(estava em hora do jogo -

a final em casa, só).

A chave azul, como sempre,

entravou na fechadura;

fulgindo, na rua escura,

na margem... surgiu você:

Sacolas já não haviam;

contato, ora, nem pensar!

Xucro de fatos ou feitos,

imponho-me imaginar:

Será que vinhas tristonha,

saída da enfermaria,

de onde ouvira, enfadonha,

notícia do seu avô?

Não, seu andar curvilíneo,

no calcário e no basalto,

rumava ladeira abaixo,

sem transpirar; sem pavor.

Seria essa imagem sua

matéria, refém, criada

por minha alma sem graça,

sem festejos, sem canções?

Ou simplesmente vagavas,

era filha do destino,

um conchavo de neutrinos

nos entretendo em complô?

A sua saia rodada

revelava alta costura,

via-se no andejar postura

de quem fora etiquetada;

a cabeça sempre erguida

sugere "sou resolvida";

é gente que anda cercada

de gente que anda cercada.

Por hora perco o interesse,

pois meu time perde de um:

"Eu sabia... se pusesse

o Marco Antônio desde o início,

o centroavante, coitado,

com quem ia tabelar?

Marcado assim homem a homem,

como ia triangular?"

No intervalo, a sandália

da atriz do comercial

passeia desengonçada

e me aguça o passional:

"Deus" - questiono-me sofrendo:

Em que pedaço de asfalto,

com tal pressa e com tal salto

foi tal moça se abrigar?

Já sei! Vou descer a rua,

já nem me preocupa o frango,

vou passear os caninos

sem querer... sem intenção...

e de repente, quem sabe,

dou de cara com a escarlate

blusa pouco decotada,

debruçada no portão?

Não sei se essa atitude,

pareça-lhe um pouco rude;

talvez os cães a assustem

e eu perca tempo e noção,

mas posso passar por perto,

bem discreto e sorrateiro

como se fosse o carteiro

pra sondar sua habitação...

- Pare! - repito pra mim:

-Essa formosa senhora

é cria do desespero;

do teu abjuramento;

tua louca aspiração

de ter na vida um enfeite,

um delírio, um deleite;

culpa dessa solidão.

E se for compromissada,

mãe de dois e um por vir?

E se for desajustada das idéias,

sem porvir?

Em time que está ganhando

não dá pra botar o dedo,

já conheces os seus medos,

seus anseios e jeitão.

Não vale arriscar, por dona,

suas tardes na cantina,

a cachaça, a jogatina

e os assuntos triviais;

confessa-te derrotado,

flerte é coisa do passado,

não te aproximas do fogo,

penas não resistirão.

És duro, gato escaldado,

sorristes apaixonado,

bebestes o fim das dores,

enterrastes a paixão.

Pois então, embate feito,

cerra de uma vez o peito,

deixa de arrumar desígnio

pra amor e sofreguidão;

E muda então de interesse,

de veredito, endereço,

foges enquanto ainda há tempo,

traquejo, força e opção...

(...)

Mas do amanhã ninguém sabe

já disse alguém por aí;

a noite passa calada,

chispando diante de mim;

no céu, a ave sabida

canta seu canto sabido,

passarinham passarinhos,

chuva fina está no fim;

o mesmo tamarineiro

incensa agora o terreiro,

as mesmas vespas rodeiam

destemidas os jasmins,

e vem mais uma alvorada,

animosa e desalmada,

amarelando o que era

tão anil e desigual;

mesmo jardim, mesma praça

mesma pele, mesma graça,

provoca em mim mesmo gosto,

mesmo rosto… mesmo mal.

Pergunto então, já sofrido,

por esse amor já sofrido,

por toda dor, já sofrido,

ao vento que aqui passou:

- Onde será que ela mora?

Cassio Calazans
Enviado por Cassio Calazans em 27/11/2017
Reeditado em 02/02/2020
Código do texto: T6183166
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