Apartheid I

Talvez eu seja "hippie" e creia em música holandesa,

Por mais que seja esfinge a essa Pátria natureza

Nesse mundo que não gira, em que pagamos pra pagar.

Nessa "terra das palmeiras",

"Onde canta o sabiá"¹,

Há domínio e estranheza,

Ninguém chega a algum lugar.

O metrô é um velho exemplo desta nova decadência:

Deixamos que exista os bancos preferenciais

Em troca da preguiça de não ter pela presença

Dos iguais ao nosso lado — dos iguais tão desiguais.

Por que não educar o bravo povo reprovado?

Por que não preferimos a nação a um Estado?

Qual será o sentido de bradar por "Pátria livre"

Se a frequência desse sonho, com frequência, não existe?

[Memórias de um jovem

(Memórias tão remotas...

Que não são decerto póstumas...)

Memórias de quem não tem memória;

Memórias de quem quer virar memória;

Memórias de quem quer pintar a história:]

A Guerra Santa é menos grave que uma dança

Protagonizada por quem mata esperanças,

Coreografada por quem nunca vê ninguém;

Coreografada por quem nunca amou ninguém.

O "Apartheid" começou num banco cinza de metrô

Que não vê utilidade no espelho retrovisor.

Segregamos semeando egoísmo;

Democratizamos ocultando o lirismo.

Vestimos este bom sapato

E compramos mais cigarro

Tão felizes por bom grado

E por sermos tão otários...

"Apartheid" que reparte as metades desiguais;

"Apartheid" que renasce em nossos velhos tribunais.

Há quem o critique nas tevês e nos jornais,

Desmentindo seus segredos de vender comerciais.

(Saber e criticar não chega perto

De fazer, colaborar, de peito aberto!)

Velhas novidades de quem preza as cidades

Mórbidas, inóspitas, doutoras da verdade.

Onde estão as valsas e os defeitos?

Onde estão as rosas e os erros

De nossa velha língua portuguesa?

O tabuleiro já deixou de ser xadrez;

Damas corrompidas, transformadas em turnês...

O piano já perdeu seus acidentes

E, com teclas desiguais, está ganhando muitos dentes.

O piano já perdeu seus acidentes:

Tonalidade descoberta, desonesta, que dá Dó...

A ternura já sofreu seu acidente

E cavalga solitária, sem que veja a luz do Sol...

NOTA:

1. "Canção do Exílio". Gonçalves Dias.

Caio Trova
Enviado por Caio Trova em 07/08/2010
Código do texto: T2423906
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