Raimundo sem-terra
Raimundo, durante sua vida inteira, cultivou.
O mundo de Raimundo era plantar:
arroz, feijão, batata, cana, banana, café, milho.
Mas Raimundo dizia aos filhos que tinha fé:
um dia ia ter sua própria terra e trabalhar para si,
ao invés de ver calejarem suas mãos
e tombar o seu suor que fazem a vida virar quimera,
dando lucros aos patrões, que não trabalham
e, no entanto, são uns boas vidas na cidade,
enriquecidos com o trabalho alheio,
sobre alheia produção de subempregados como ele.
Raimundo, na verdade, era um grande sonhador.
Não lhe importava o tamanho de seu esforço
ou quanto a vida, desde menino moço,
lhe impunha de trabalho, pobreza e dor.
O que mais alegrava Raimundo era ser reconhecido
por toda gente da cidade como homem respeitador:
das leis, da vizinhança, sendo ordeiro, verdadeiro trabalhador.
Contudo, Raimundo vivia buscando outro mundo:
aquele onde o roceiro tem valor,
ao invés de só enriquecer os patrões,
feito burro que puxa a produção, arado, tambor,
quando não se vê substituído
por máquinas, plantadeiras, trator ...
Raimundo dizia que é por isso
que o homem se faz fera, vira ladrão,
faz besteira na face da terra,
e é capaz de inventar até guerra:
por não ser valorizado em seu sagrado trabalho,
mesmo levantando de madrugada, ainda com orvalho,
pra pegar caminhões, ônibus de bóia-fria,
veículos velhos que transportam à revelia
homens, mulheres (e até crianças) aos canaviais,
trabalhadores que morrem à exaustão, todo dia,
sem ninguém ouvir ou socorrer seus ais.
Raimundo chegou a uma conclusão,
e todo dia repetia: o que fazia para si,
senão encher de calos suas mãos
e, no fim de tudo, dar os lucros
das sofridas produções aos patrões que,
estes sim, se garantiam de fartura, fortuna,
luxo, e boas fruições?...
Aquilo não era vida de gente não!
Um dia Raimundo amanheceu decidido:
ia pra sempre mudar sua vida.
Foi assim que Raimundo virou sem-terra
e comprou pra si a tal falada guerra,
provada por tantos roceiros
nos diversos rincões brasileiros...
Foram anos de luta. Raimundo ganhou a labuta:
ganhou terra, ganhou dinheiro, tirou frutos.
Não a ponto de se enriquecer,
mas ao menos agora dava pra dizer:
Raimundo, embora já velho, virou homem
daqueles que têm e vêem, na vida
construída na terra, dignidade.
Pois ele planta, ele colhe, ele pesca, ele come.
Raimundo agora é homem de verdade!
Vive hoje como nunca viveu bem
no tempo que morou na cidade,
de onde, tirando as boas amizades,
não lhe resta saudade.
Raimundo diz hoje à família e aos filhos que o mundo é cheio de lição: que o homem só tem brilho quando planta e colhe, para si,
os frutos de sua própria produção.
(Poema extraído do Livro: "Geografia em poesias: tempos, espaços, pensamentos - Luiz Carlos Flávio).