Criadagem

Criado mudo

Me arrasto, me gasto,

me afasto de tudo.

Criado cego

Me nego, me arranho,

me esfrego no banho.

Criado surdo

Não rimo o absurdo

do mando e desmando.

Teu criado de outrora,

agora alforriado,

dispensa qualquer ordem.

- Insolência.

Essa gente que nem decência tem.

Ter com que pagar

a eira e a beira

e a feira do mês.

Inês Pereira, Ladislau,

Araquém, do quê mesmo?

- Sei lá. Não sei meu bem.

Ainda têm

uma sobrevida.

Sobremaneira seguem

sopesando o caminho.

Para isso foram criados

Mansos, servis

e no primor da resignação.

Se faltar o amor,

que não lhes falte a oração.

Se faltar o pão,

alimenta-os da palavra.

Travem os estômagos

e dê-lhes letra por letra

da regra infundada.

Mais importante e lustrosa

é a ação caridosa,

que sela a dependência

e a premência do ego.

Prego aqui o devaneio,

vocifero o escanteio

dessa tal justiça social.

Destronada e postiça,

colada no peito

de uma ralé mestiça,

vive o exílio dos tempos.

Ela que seria esteio,

a divisão e o meio

exato do viver,

segue criada muda,

arrastada, gasta

e afastada de tudo.

Segue criada cega,

negada, arranhada,

na querença dum banho.

Segue criada surda,

na rima absurda

que anda e desanda.

Decerto, não sabes tu,

bibelô ancestral,

que o mal foi dissecado,

desnudado em praça pública.

Aceite sim que

tua criada de outrora,

agora alforriada,

é ave canora

no fim da madrugada.

Felix Ventura
Enviado por Felix Ventura em 15/12/2018
Reeditado em 30/01/2019
Código do texto: T6527586
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