FAMÍLIA VENDE TUDO
Vende-se barraco de madeira
com vista para o córrego
com água e esgoto desencanado
dois por quatro,
sem tramela
com buraco
para o frio entrar.
Devido a pressão
vendo jogo de vazias panelas
frigideira sem óleo
vida sem tempero
ronco de barriga
insônia da miséria.
Vende-se choro de mãe
com criança no colo
na fila do hospital
dessa vida sem bula
sem cura
sem melhoral.
Vende-se abandono de pai:
“Ave-Maria, pai nosso que estai no céu,
como batia, esse filho da mãe!”
Vende-se natal sem brinquedo
sem bola nem boneca
uma foto amarelada
do tio Noel
puxando trenó sem cavalo
nas ruas da cidade.
Vende-se vaga em escola ruim
de criança que cresce sem creche,
sem merenda, sem leque
raiz dos problemas
de todos meu "pobrema."
do destino em xeque.
Vende-se sapato furado,
chinelo de dedo e calos nos pés.
Vendo fé cega,
lágrimas enferrujadas
calos nas mãos
de orações não atendidas.
Vende-se anjo da guarda
surdo-mudo
sem experiência
contra a pobreza.
Vende-se um corpo falido
cheio de rugas
que se abriram como estradas
nessa sina sem rumo, sem saída,
de vida inteira, quebrada.
Vende-se rim
fígado, coração
e sonhos dormidos.
Vende-se alegria de ano novo
primeiro amor, nunca usado.
Vende-se a porra toda.
Vende-se desemprego
unha desfeita,
dores nas costas, no peito e dores de amores.
Vende-se menina grávida
guarda-roupa sem roupa
vendo menino
no semáforo
equilibrando o limão
da vida amarga.
Vende-se bala perdida
que encontra sempre a molecada
nas esquinas escuras
desse destino claro.
Vende-se samba de Adoniran
onde a favela fica bonita
com saudosa maloca e tudo,
já tem luz elétrica esse lugar escuro
onde o político se ilumina.
Vende-se futuro
que não vale nada
por isso leva
o passado de presente.
Vende-se racismo
essa escola de preto no branco
que desfila na avenida Brasil
o ano inteiro depois do carnaval.
Tinha até sorriso e felicidade pra vender
mas como ninguém nunca usou…
se perdeu nos becos da favela.
Vende-se alegria,
mas tem que levar a tristeza também.
Família vende tudo,
antes que o incêndio
acabe com ela.
sergio vaz
*do livro #floresdealvenaria Global Editora