OS VERSOS SATÂNICOS DO VELHO NAVARRO

Eu conto, se é o que os senhores pedem. Conto mas aviso, o que vi de fato

foi apenas o desfecho pavoroso de uma história que se desenrolou antes; vou apenas colocar moldura na cena final desse ato macabro que só não é incompleto porque encontrei os detalhes sórdidos no diário do velho Navarro.

Eu conto, recrio a substância, do resto o caldo, porque cheguei tarde ao átrio, ao patíbulo tétrico onde o fim trágico surgiu aos meus olhos entre os raios da mais negra noite da feroz tempestade.

Por acaso eu andava atrás do meu gato, eu o seguira, era preto e manso mas tonto, quase um asno o inocente bichano. Na rua onde morava Navarro encontrei-me com espanto de frente a velha casa do louco e entrei guiado pelos espasmos do silêncio.

Mais tarde li nos rascunhos que encontrei sobre a mesa desta sala as palavras soltas que pareciam receitas ou sonetos convulsivos sem métrica... Era o diário do velho moribundo.

Lendo compreendi o que tinha acontecido naquele antro. Por isso, onde não há luz no meu relato insisto, para o vosso entendimento imaginem o que não invento.

*

Navarro era homem velho e solitário, cansado de estar no mundo, sentia-se ímpar, alheado, apátrida, e por isso tinha alinhado em seu desejo mórbido por companhia o destino certo de morrer em breve.

Desatinado e atingido pela febre da solidão, o velho alquimista se propôs costurar restos humanos e juntar dos mortos pedaços apodrecidos mas ainda intactos que foram depositados nas covas rasas do antigo cemitério.

Navarro resolveu trazer à vida um ser que fosse a junção de muitas pessoas mas apenas trouxe o pior de cada nos corpos que encontrara.

A pior parte, o desprezado, o quanto deles era na carne o podre sinal da mentira representada em vida.

Eram quaisquer corpos putrefatos, soterrados no abandono da morte na triste sina mais triste ainda de terem sido abandonados primeiro pela família depois por de Deus.

Teria sido esse abandono o motivo da escolha dos corpos, era gente que amargou lentamente e agora nas tumbas silenciosas e frias e nalgum mausoléu sombrio sofriam a espera eterna da morte infinita... Essa me pareceu ter sido a percepção da própria vida que tivera o velho Navarro.

Percepção mal traduzida nas palavras do diário onde empreendi busca dedicado a perscrutar e entender.

Conclui minha leitura tremendo de medo em meio ao sangue que os senhores podem ver ainda fresco. Na sina de sobrepor morte e morte para criar vida com desprezo e abando o Navarro criou um monstro. Emendou erguendo num só corpo rígido um hibrido de muitos corpos.

Navarro cortou, amputou, seccionou e por fim juntou cabeça, tronco, braços, seios, mãos, pernas, uma vulva inerme e um pênis avantajado

provavelmente de um homem orgulhoso do motivo em vida de estar garantido na hegemonia masculina apesar de nada ter tido ou sido além disso o que dos demais o distinguisse.

O velho cansado sonhava mimese aparelhada, sonhava compor um Tirésias moderno. Resoluto buscou auxílio na alquimia das bruxas

e dos magos ancestrais desconhecida de qualquer público. Depois animado fechou os livros proibidos já muito lidos e tomou notas para compor uns versos convulsivos, esses versos satânicos que agora os senhores tem em mãos; rascunhos respingados de sangue, de excremento,

de sêmen e palavras viscerais que em minha narrativa ganham ritmo enquanto perdem o brilho.

*

Finalmente o velho viu-se cara a cara com a forma definitiva e indefinida do seu um autômato; a criatura hedionda tinha na feição a estampa recortada dos séculos e no corpo costuradas épocas como se cada cílio de tamanho diferente fosse o registro do tempo macerado.

A mandíbula proeminente era desenho hediondo duas metades distintas sobrepostas na arcada formava um detalhe duplamente horripilante já que a superior feminina com dentes sem máculas mal se encaixava na inferior extraída de um desdentado.

As duas pernas infantis davam à criatura porte ridículo, ligadas à pélvis dividiam o corpo ao meio onde os genitais se completavam formando um duplo que não era nem poderia ser.

Os membros antes em paz abandonados na perfeita solidão do esquecimento pútrido, não atendiam a ordem o velho Navarro que para ele gritava quando pela janela avistei a cena mórbida da ressurreição:

_ Fala!

Depois de uma eternidade, num gesto de demorada agonia jamais conhecida, a coisa-homem-mulher abriu um olho negro e profundo

tão escuro como a noite enquanto piscava o outro que era de um verde claro, raso e opaco e triste.

_ Fala maldito, fala!

Quando ali cheguei, a criatura estava pronta, era esse poço de almas perdidas a unirem-se como a vinha a brotar em solo estéril. O aposento em que a cena se desenrolava parecia o interior de uma catedral cheia de traças com seus interiores inundados de sombras pegajosas e uma inútil majestade intocável e invisível.

A Criatura estava pronta! Fiapos de carne podre e tendões amarrados com fios de aço; A Criatura estava pronta! Argamassa de mãos postas gélidas minúsculas, tão menores quanto corruptíveis sorvendo para dentro das palmas unidas prece e dor.

A Criatura estava pronta! Expressa silêncio absoluto. A monstruosa soma de testículos e vulva estava viva! A aberração estava pronta! Deu-se ao mundo natural como o olor que sempre há nas salas de incenso e nos altares de adoração para deuses mortos.

A pele madeira seca cor de sangue era terra molhada em torno do lagar pisado, a aberração estava pronta! A atmosfera densa de cheiro inebriante

era o hálito exalado de demônios ocultos. Obra de magia, o velho Navarro deu forma e postura ereta costurando o que agora eu via sentado ao seu lado de terno de linho e sapatos pretos afiados.

*

Como se Navarro pudesse recriar também a alma, envolto numa alvura de máscara sem expressão, sorria pinçando o lábio e chorava repuxando um olho. A cena era o impasse final de uma gestação errática, era a derradeira e a obscura bifurcação da vida.

O motor da loucura impelido ao pranto agradecido num lamento ao contrário, o velho Navarro gritava:

_ Fala!

No entanto do sonambulo apenas se via o semblante enigma de intocável e perfeita ferida. Porém eu soube sem saber como que o medonho era nossa figura.

Nós que somos malcriados na amargura do vinho perdido. Somos a reservada mistura do odor do sexo não lavado, o coito severo, a ausência de um beijo. A memória preservada do que já é resto onde pensávamos ser o inteiro, o perfeito sonhado.

_ Fala, Fala! Gritava o velho Navarro.

*

Mas o que digo, nem sei mais o que lhes conto. Tudo isso invento dos versos que tinha lido nas páginas do diário do velho lunático? Ao ler a experiência descrita fui agraciado ou maldito? Sei que também eu, ébrio de ler o manuscrito, sorvi da tina o éter levedo e dei por mim em nuvens abrasivas de fervor lascivo. Consumi e fui consumido.

Os versos diabólicos eram a criatura, o criador e o vazio. Fui penetrado pelas palavras de Navarro até a alma, durante a leitura pairando sobre o desaterro no chão quem me visse levitando adivinharia a mão do bruxo, esvaziado, morto e mudo igualmente tocado derretido.

Mesmo assim lhes juro, fui purificado quando ouvi o estrondoso grito:

_ Fala!

O embrião adulto mescla de Tirésias e Sísifo, arremedo da força, um triz, ameaça da vontade, nesse momento ergue-se com a coragem de quem avança sobre escombros para sustentar a carne espezinhada.

_ Fala agora, fala!

Oh palavras, que estranha impotência tens! Sois vivas e mortas, brandas e insuficientes, mais que tortas, palavras inúteis... inútil!

_ Fala maldito!

Caros senhores inquisidores, eu repito, emolduro a cena incompleta e pinto só o que no desenho do relato disperso parecem corpos revestidos de anseio e ainda despidos da carne fria e crua. Eu apenas sustento o lastro do rastilho, Navarro ergueu com a coragem falida de quem abismos o salto ameaça mas é engolido pelo arremedo da vontade:

_ Fala, fala!

Gritava o velho quando entrei.

_ Maldito!

Gritava a voz cansada, o velho sorvido e seco e já pertencido à coisa criada.

_ Fala, maldito!

Foi então que o criador percebeu... faltava a língua que saltando da boca úbere aberta em vala expressasse numa palavra que fosse o mistério do além de onde vinha ressuscitada e que nos espera depois da morte.

Então o velho Navarro fez seu gesto desesperado. Mais por constrangimento que por ânsia do sacrifício, Navarro tomou de uma faca o corte cego que a lâmina tinha e fez da própria língua o músculo que agora enfiava goela abaixo do monstro que à seus pés chorava em secreto delírio.

Para figurar tanto nos versos como na vida, o híbrido medonho, o autômato sonâmbulo que da letra ergueu-se sêmen não ejaculado, grito parturiente e pedido de socorro negado, amparou o velho Navarro que sangrava e esfregando em seus lábios descarnados o vão aberto que mais parecida farpa, uma vírgula mal traçada, uma praga saída do velho desgraçado, no destempero da agonia ao ver-se de pé vivo mais uma vez para o resto da nova existência sozinho, a criatura medonha apanhou da mesma faca o corte e o pulso esquerdo abriu gemendo enquanto pronunciava a única palavra soletrada:

_ fi nal men te.

*

Foi assim, caros senhores, aqui cheguei perseguindo sombras na escuridão. e os encontrei ali deitados, a criatura tremia e sorvia o jorro vermelho betume amparando em seus braços de retalhos costurados

o velho Navarro que morria.

Na direção da porta que eu abri, seus olhos tinham um vazio petrificado de não saber o exato mistério de onde vinha, o mistério era uma agulha fincada no vórtice dos meus olhos.

Nesse momento meus ouvidos ficaram assombrados e desde então, sem juízo, me pergunto se tudo que penso ter havido poderia mesmo assim ter sido assim contado.

Porque meus ouvidos ouviram, eu juro!

Meus ouvidos ouviram a criatura pronunciar...

_ FI NAL MEN TE

*

*

Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 01/03/2017
Reeditado em 23/02/2019
Código do texto: T5927340
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.