No supermercado

Às vezes uma pessoa se pergunta como é possível

existirem os supermercados com tantos

produtos a disposição da mão compradora.

Enfileirados figuram nas prateleiras destinadas

a suportar o peso dos alimentos engaiolados,

descontextualizados, desalimentados.

Seguindo o bom costume de adaptação ao meio

tenho desenvolvido um instinto especial

para colocar os produtos comprados nos saquinhos.

Procuro sempre levar dous, de maneira que o peso

seja bem distribuído entre os meus dous bracinhos

e as mãozinhas que devem agarrar as abas subsequentes.

Assim vou colocando primeiro os recipientes mais pesados,

aqueles que contêm líquidos e estão feitos de vidros

opacos e cartões repintados com logótipos absurdos.

Depois coloco os plásticos mas levianos e que tanto pesam

na reciclagem natural das cousas, pois duram e duram

por séculos e séculos até o esgotamento duma cultura.

Então é quando a empregada do supermercado fica pampa

de me ver ordenando os produtos a introduzir nas bolsas

e empenhando-me eu em não me surtir de mais objetos.

Aí eu explico que está tudo medido e organizado,

sendo assim que sei o que vai primeiro e o que vai depois

para finalmente ter em ambas mãos o peso calculado.

Dessa guisa vou caminhando até a minha morada

pois aqui é que se exemplifica o grande mistério do quase,

já que viver quase perto do supermercado evita ir atrasada.

Mas também impede o uso de qualquer transporte,

pois para caminhar meio quilómetro não é de bom senso

apanhar um bus urbano, nem o auto, nem sequer um comboio.

Os dous saquinhos a rebordar vão puxando do seu peso

para o epicentro enquanto eu com meus dedinhos

vou tratando de os deslocar com cuidado e sem complexo.

Deixam marcas, sim, mas é tão pouco o dano que em minutos

tudo se esvai das mãos, nada comparável às marcas

no coração que deixa o trabalho da terra, ou dos sonhos.