MAS SERÁ O BENEDITO OU SIMPLESMENTE O SANTO ANTÔNIO? (AUTOBIOGRÁFICO "CONVERSAS COM MACAÚBAS"

CAPÍTULO V

1957

Desde criança sempre tive uma forte inclinação religiosa. Cuidava do nicho e dos santos da casa, limpava-os, arrumava-os, ornamentava com flores e os aromatizava. Pra começar, eu me chamo Antônio, ou melhor, Antonio Fernando. O meu Antonio já teve o acento circunflexo na certidão de nascimento, que depois, foi retirado pelo pessoal do Instituto de Identificação Pedro Melo, de Salvador, por isso, ora eu coloco o acento, ora eu não o ponho. Minha mãe, grávida de mim aos quase oito meses, tomou uma queda em pleno centro histórico de Salvador, mais precisamente na ladeira de São Bento e teve de ir às pressas me parir no Hospital Português, eu, o sétimo rebento, quase arrebento e fui arrebatado antes do tempo. Aí, católica fervorosa e devota de Santo Antonio (com acento ou sem acento?) fez promessa, que se tudo saísse bem pra ela e pra mim, que se eu nascesse sem problemas, se fosse homem (e eu fui. Fui não, sou!), ela me daria o nome do santo de sua devoção. Antonio é o nome de ordenação e Fernando o nome de batismo do nosso querido Santo Antonio e esses são também, os meus nomes: Antonio Fernando. Como vinha expondo, desde sempre me envolvi com a religiosidade. As pessoas diziam que eu parecia Sant Antônio Menino.

Há bem pouco tempo, eu soube por uma pessoa que viveu quarenta anos com nossa família e que só nos deixou quando aposentada, depois que mamãe morreu. O seu nome é Alaíde, mas todos os da nossa família sempre a chamamos de Tutu. Pois bem, ela me contou que eu havia comido quando era criança, o Menino Jesus de um Santo Antonio antigo, de madeira, verdadeira obra de arte, e, ninguém nunca soube o que aconteceu, ou seja, se eu havia posto pra fora, o pequenino ou quem sabe, Ele ainda está comigo, no meu interior, quiçá absorvido pelo meu organismo. Muito criança ainda e tropeçando na própria língua, a língua portuguesa, eu pronunciava Tantantõe, aí peguei intimidade com o fradeco e até hoje eu chamo assim. Sinto-me da cozinha da casa do santo que pra mim sempre fou “tanto”, nada a ver com “tan-tan”, nesse caso o tan-tan sou!

Mais tarde, estudei no Colégio de São Bento, próximo ao local da queda que me precipitou a vinda precoce ao mundo. Ouvi certa feita, alguém dizer que são doze os signos. Que Áries é o primeiro e que o ariano está vindo pela primeira vez, tendo o direito de voltar a esse mundo velho, ainda mais onze vezes. Ora, se eu tivesse nascido no prazo normal, seria do signo de Peixes, ou seja, o 12º do zodíaco, portanto, estaria vindo a Terra pela última vez. Agradeço, pois, a aquela queda, ter nascido aquariano para poder ter direito a vir mais uma vez, aí sim, como pisciano. A próxima encarnação que me aguarde!

Aos 09 anos, 1957, portanto, fui morar em Amargosa, uma cidadezinha lindíssima e cheia de riachos & cascatas, represas, jardins & parques, flores & arborização, mais ainda sem luz elétrica. Após as 10 horas da noite, o motor a diesel que gerava energia era desligado valorizando a luz da lua e o brilho das estrelas e o frio da noite produzia sonhos coloridos e sonos de muita paz. Pude ali, conhecer precocemente, o paraíso terrestre. Chegávamos de trem, depois de travessia marítima da Baía de Todos os Santos, numa embarcação a vapor, de Salvador até São Roque, onde pegávamos o trem até Nazaré das Farinhas e baldeávamos para uma outra locomotiva até Amargosa. Em Amargosa conheci as Cruzadas, movimento católico envolvente de crianças e jovens e cheguei a participar delas, onde me iniciei no teatro, no canto. Mas tarde, fui coroinha na Igreja de Nossa Senhora do Bom Conselho, padroeira local. Em Amargosa, aprendi bicicleta com Edmilson Lopes, meu primeiro amigo, de 7 anos, também empinei arraia, nadei nos rios e represas, assassinei alguns passarinhos com pedradas de bodoque (escrevi badogue, que é como se chama por aqui o estilingue criminoso, mas o computador, que não é baiano o corrigiu para bodoque), aliás, crime e pecado, que jamais me perdoarei, afinal, sou hoje e quase sempre fui ferrenho defensor da natureza e dos animais. Nem barata, eu mato. Ah, eu também aprendi a fumar, graças a Deus, desaprendi depois. Em compensação, naquela época, conheci o amor e fui acometido de minha primeira paixão: Cidinha, ela tinha nos olhos amêndoa e azeitona, no formato e na verdura e quando eu ouvia aqueles versinhos que diziam:

“quando o verde dos teus olhos se espalhar na ‘plantação’...”,

eu imaginava um campo verdejante no entorno de mim mesmo e queimava de febre entorpecente por fora e gostosa por dentro, desviava o pensamento de toda a realidade e me sentia dentro dum espelho de sonhos com três personagens únicos que eram eu, ela, e, as possibilidades que o amor nos pudesse dar, mas, inocente e infantil, nunca chegamos a nos tocar, nem mão com mão. Na igreja, uma inabalável fé, fazia-me pensar em seguir carreira eclesiástica e ajudar a missa tornou-se hábito e reforço do desejo de concretizar aquele intento. Até o dia em que, do elevado do altar, meu primeiro palco, vislumbrava uma visão incrível na platéia: uma maravilhosa mulher da cor do jambo deixava escapar para o meu deleite visual, uma paisagem carnal sedutora que ia através dos joelhos abrindo caminho pelo torneado par de coxas até...! Aquilo me tirou da realidade surreal dos incensos que eu expandia do turíbulo num movimento de gangorra ou de pêndulo de lá pra cá de cá pra lá. Sai completamente do sério diante da visagem – sim, parecia irreal de tão real, o caminho da perdição, tentação de Sant Antão. Modifiquei o movimento do incensador girando-o aos 360°, derramando e espalhando sua brasa por todo o altar, queimando inclusive a bainha de um dos paramentos do padre, que se espantou com aquela inesperada, inexplicável e inusitada atitude e focalizou-me com um olhar cortante como fogo azul de maçarico, depois, perdendo também as estribeiras, abandonou o sacrossanto ato da missa, o dito padre que saiu correndo na minha direção, dando conta de quê, ai de mim, se me alcançasse! Corria, corria, corria, em direção à platéia, depois retornando ao altar, alcancei a sacristia e um enorme corredor já fora da igreja, cheguei numa escada, onde subia, subia, subia e já sem fôlego alcançava o topo de um bueiro, que baforava fumaça preta duma possível padaria interna do seminário.

Os fieis abandonaram o culto da missa e se postaram em frente à igreja, tecendo comentários os mais diversos, óbvio, sem entenderem absolutamente nada, mas, perguntando-se o que aconteceria com Toinho, ou o Santo Antônio menino, dali pra frente? Seria afastado da função de coroinha ou não seria mais aceito no Seminário tão logo chegasse à idade propícia? Teria enlouquecido, aquele menino tão educado e atencioso? Enfim, o que teria ocorrido ao exemplar garoto?

De repente,

não mais que de repente,

surjo e sou visto,

antes, de tão bem quisto...

na boca da chaminé,

pretinho, pretinho da silva,

encoberto de fuligem!

Oh virgem de todas as virgens!

E bradaram, então:

Cadê Toinho,

tão galego,

tão branquinho?

Outra vez de repente

um novo ser surge

por dentro e por fora,

sujo nada, todo em negrito.

Um milagre! Uma bênção?

Mas será o Benedito?

Ou o Santo Antão?

Bem dito? Mal dito?

Maldita, a bem dita e bendita mulata

que me tirou da vida eclesiástica

de pecados e extremas culpas.

Já pensaram,

desde a bendita queda

na ladeira de São Bento

até a ´bene dicta´ aparição

no bueiro do convento

chegando hoje ao papado de Bento, o XVI?...

IH, se o maldito padre me alcançasse

Eu teria sido tragado, papado pelo seu ódio...

Quem faz um cesto faz um cento?!...

Que agonia, quanto ungüento bastaria

Pro alívio dessa desgarrada rês?

Feche os olhos, mas não conte até três...

Se não gostou dessa história como conto?

Não invista nessa estória nem 1 conto,

Não aumente na simplória nem um ponto...

respire fundo e engula o choro

não faça com os tolos mais um coro,

agora sim, conte enfim até três...

seja mais criativo e invente

o que me dizer na próxima vez!

Serrinha, 30 de dezembro de 2004.

Antonio Fernando Peltier
Enviado por Antonio Fernando Peltier em 18/01/2009
Reeditado em 18/01/2009
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