AMARGOSA – AMAR GOZA. DESCOBERTA FANTÁSTICA! (AUTO-BIOGRÁFICO - " CONVERSAS COM MACAÚBAS")

CAPÍTULO V

1958

Amargosa se localiza no Vale do Jequiriçá, entre o recôncavo e o sudoeste baiano, nem tão perto, nem tão longe de Salvador. Lugar farto de passarinhos, animais nativos, frutas, legumes e verduras, produtos de laticínio e de prendas caseiras, sobretudo na culinária de doces e tapiocas, além de de rios, córregos, caldeirões, represas naturais e artificiais, onde aprendi a nadar, a andar de bicicleta, a fazer e empinar arraias e periquitos. Eu que até então vivia em apartamento sem direito a um palmo de quintal. Tinha quintal no prédio, mas era-nos proibido.

Dos passarinhos, lembro bem dos sete cores, coleira, canário, rolinhas fogo-pagou, cardeais, periquitos e papagaios que se prendiam com alçapões ou se compravam no meio da feira de todo sábado sem repressão. E lugares que meus os olhos registraram lindos: a estação ferroviária, onde saltei um dia do ano de 1957, após uma inesquecível prazerosa e cansativa viagem numa Maria Fumaça movida à lenha, desde São Roque, após a travessia marítima da Baía de Todos os Santos. Ali, pegava-se a locomotiva até Nazaré das Farinhas, baldeávamos para outro trem com destino a São Miguel das Matas e enfim até Amargosa, fim de linha com vira-mundo e tudo para que a máquina propulsora das classes manobrasse 360° e novamente fosse direcionada para o retorno à capital.

Lembro a música cuja autoria não registro, mas que é uma gravação do nosso maior músico de todo o norte e nordeste, quiçá do Brasil, Luiz Gonzaga:

O trem danou-se naquelas brenhas

soltando fogo, comendo lenha,

comendo lenha e soltando brasa

tanto queima como atrasa...

Marcou tanto essa viagem que durante algum tempo, de noites em madrugadas, inda passei, escutando e sentindo o apito e o sacolejo do trem.

Antes do trem, gente tinha hora marcada pra sair de Salvador no vapor João da Botas, mas não tinha horário certo pra se chegar a Amargosa, de trem. Durante o trajeto podia acontecer de tudo: descarrilamento, muita chuva que assustava, calor intenso, novas amizades e grandes bate-papos. Não tinha assalto, isso não. Tinha garapa de caldo de cana e bolachinha de goma, tinha cachorro-quente frio e aquela sensação de que já havíamos passado por tal experiência noutras viagens através do telão do cinema em filmes de bang-bang. Cada estação, uma parada pra abastecer com água e lenha. Na mente, a impressão de que nunca chegaríamos, haja vista a ansiedade do chegar. Tudo era novo em termos de vivência. Foi à noite, tarde da noite que desembarcamos em Amargosa, palavra que minha imaginação, embora de criança, logo admitia: adjetivo feminino de amargoso? Porém, também: amar goza. É pra lá que eu vou. Vai ser bom, vai ser ruim? Desde sempre percebia o amor, a poesia e a inspiração em mim e me perguntava e me respondia:

Cor do amor?

Transparente, água, ardente!

Sabor?

Cajarana madura.

Cheiro?

Alfazema.

Som?

Trem partindo

(tre-pi-dan-do tre-pi-dan-do ter-pi-dan-do...)

café com pão, manteiga, não...

café com pão, manteiga, não...

café com pão, manteiga, não...

café com pão, manteiga, não...

pi-uí-uí-uí-úúúúú!...

Caminho?

Via Crucis.

Estrada?

De ferro, cada estação.

Estação?

Primavera, verão!

A igreja de Nossa Senhora do Bom Conselho e o Seminário e com eles, as Cruzadas. Muita força de religiosidade impregnada em mim a partir de minha mãe.

A praça da feira e o Cristo Redentor, uma míni réplica de um outro, o do Rio de Janeiro. Rua São João, onde aprendi a bicicletar. O Bosque: perfeito parque natural com árvores seculares de grande porte, como Palmeiras Imperiais e Jequitibá O Jardim da Praça da Igreja. A Lira, que era também o clube social onde soltei meus pés-de-valsa com orquestra ao vivo ostentando estantes musicais decoradas cada uma com clave de sol a sustentar as partituras de boleros e sambas de Anísio Silva, e Nelson Gonçalves, do Trio Irakitan, rumbas, “roquinhos´n rolls” e os ritmos da época.

Lembro de cor e salteado todas as letras das músicas dessa inolvidável época, como esta da dupla Jair Amorim e Evaldo Goveia:

Um dia sonhei um provir risonho

e coloquei o meu sonho

num pedestal bem alto.

Não devia e por isso me condeno

por ser do morro e moreno

amar a deusa do asfalto.

Um dia ela casou-se com alguém

lá do asfalto também.

E eu que era seu primeiro namorado

de tão triste e apaixonado

nunca me enamorei.

É cantando que afasto do coração

Esta mágoa que ficou daquele amor

Minhas noites de luar já não têm lua...

Quem me abraça é a negra solidão

É cantando que afasto do coração

Essa mágoa que ficou daquele amor

Se não fosse o amigo violão

Eu morria de saudades e de dor

As primeiras namoradas: Cidinha, que me encantou pela beleza e pelos olhos verdes bem fortes. Vera Maria Medrado Sales, que também bicicletiava no jardim e por quem me apaixonei. Maria Fernandes, uma morena marcante, filha adotiva do prefeito João Sales.

O clima de Amargosa era e ainda é paradisíaco, pouco calor e um friozinho delicioso à tardinha e toda a noite fazendo dormir profundamente sob cobertores de lã. O carnaval era muito animado e gostoso e levava muita gente de outras localidades e municípios, sobretudo estudantes amargosenses residentes em Salvador, que se organizavam em blocos de foliões e de caretas. Era a época de JK, em que o estilo arquitetônico e do mobiliário doméstico e de repartições públicas se chamava “funcional” e lembro da letra cantada em ritmo de frevo num bloco, também chamado Funcional, criado por esses estudantes e era assim:

Funcional

é a turma maioral,

que veio de Salvador

para alegrar o nosso carnaval.

Conheço naquela viagem e estadia, uma figura que pontuou minha trajetória como apaixonado torcedor de Esporte Clube Bahia. Lourinho, um sarará feio, grotesco, que perambulava nas ruas da cidade, principalmente no Bosque com suas árvores-sombreiros. Lourinho sobrevivia graças às cigarras vivas que comia, encantando transeuntes, que pagavam para vê-lo digeri-las e degustá-las como se fosse um petisco raro e delicioso. Tempos depois, reencontro esse personagem incomum como torcedor destacado do Bahia, na Fonte Nova e onde o nosso time do peito fosse. Também foi nessa a época de ouro do nosso tricolor, campeão em 59, da I Taça Brasil.

E até os dias atuais, estamos em 2008, quase meio século e essa façanha só se repetiu em 1988, quando o nosso Esporte Clube Bahia novamente se tornou campeão brasileiro. Isso dói nos adversários, principalmente no “Vixe - vexame – tória!

Antonio Fernando Peltier
Enviado por Antonio Fernando Peltier em 19/01/2009
Reeditado em 20/01/2009
Código do texto: T1392181
Classificação de conteúdo: seguro