AMOR SÓ DE MÃE (AUTO-BIOGRÁFICO - "CONVERSAS COM MACAÚBAS")

CAPÍTULO II

(1948 / 2008)

Muita gente boa diz a célebre citação, que é: “amor só de mãe”.

Eu concordo plenamente. Cada um ama do seu jeito, traumas, estresses e realizações, conforme suas crenças, suas vivências, culturas, hábitos, a partir de suas heranças genéticas ou genealógicas.

A minha mãe, “Deus a tenha!”, criou-me de uma forma que muitos contestavam, mas mesmo assim, eu considero ter sido muito bem criado e apesar do que ainda eu venha a relatar neste capítulo, não guardo mágoas e nem traumas físicos ou psicológicos dela. Muito rígida, às vezes ríspida, disseram sempre meus irmãos e algumas pessoas que me acompanharam desde a infância, eu tinha em média de 3 surras por dia, fora os castigos, e isso, remete a pensar, que espécie de criança fui eu, no mínimo endiabrada, caso eu não tivesse a certeza de que eu não era senão uma criança meiga, atenciosa, sobretudo com os mais velhos, alguém que sempre soube escutar e respeitar outrem, coisas que desde sempre ela soube me ensinar. O mais difícil ou até fácil de analisar era o fato de ser o caçula entre 7 rebentos, portanto deveria ser o mais mimado, o mais tolerado em peraltices normais de qualquer ser e o menos ´rebentado´. Também nunca fui santo, apesar de como já relatei, em capítulo anterior, a minha inclinação para os cuidados com os santos da casa e seus nichos, quando cometendo o inocente pecado de ter engolido um menino Jesus de um Santo Antonio, e, o pior, o grave defeito, de não gostar de estudar. Desde sempre contestador das coisas estabelecidas, revoltei-me também e até hoje com os sistemas que dizem respeito à educação escolar, didática e pedagogicamente.

O ser humano não é uma máquina decorativa, ‘decoreba’ ou que necessite de algum combustível incompatível com a sua própria mecânica, por exemplo, se desejo ser artista, por que terei de estudar detalhes e minúcias de assuntos que não dizem respeito ao vir a me tornar artista? E lá ia eu apanhando em casa e na escola tendo que estudar aquilo que eu sabia que não encheria nenhum saco raso do cimento do meu alicerce na vida. Ah, sim, eu era pirracento e me vingava com algo que ela detestava que era o meu choro. E apanhava ainda mais por causa do meu desagradável choro. Não é à toa que abro esse livro citando num versinho de fim de poema “quanto sentimento armazenado, num só brado!”.

Mamãe, essa era a forma que ela mais gostava que nós, seus filhos, a chamássemos, não queria que eu tivesse um amigo ou uma amiga, a não ser os eleitos entre os diletos filhos de suas amigas. Então ela me proibia de sair de casa, de casa pra escola, da escola pra casa! Não me deixava escolher nada com a minha própria personalidade. Exemplo: eu detestava calças curtas. Ela só comprava calças curtas. Eu tinha que andar com a camisa por dentro da calça e eu gostava de usar as camisas pra fora do cós. Suspensório, eu detestava, pois tinha que andar com os tais, o que também me obrigava a permanecer com a camisa pra dentro. Então eu saia ‘arrumadinho’ que nem um soldadinho de chumbo e fazia de um tudo para voltar escangalhado, parecendo um maltrapilho.

Um sonho desde ‘pequerruchíssimo’, ter uma bola de couro, aquela de gomos, que os jogadores de futebol usavam e um dia, não sei quem me deu de presente uma bola de couro nº 1. As bolas profissionais eram de nº 5, mas mesmo assim fiquei maravilhado. Ela deu sumiço na minha bola em menos de uma semana de tê-la ganho. E ainda tentou fazer a minha cabeça, dizendo que eu já havia perdido, 1962, desmazelado que eu era.

Mas adiante veio aquela coisa toda de gostar de escrever, de ser mesmo um grande contestador, de ser diferente, extravagante, beirando a querer vir a ser realmente poeta, sensível e artista.

Um dia, um convite, aos 13 anos de idade, para participar de um filme como ator. Tinha sido uma adaptação que eu escrevi sobre Os Capitães da Areia, de Jorge Amado, só que utilizando personagens das classes, média e alta, “filhinhos de papai” que moravam na minha rua na Barra, acerca do comportamento deles.

Entreguei um script para um diretor de cinema baiano chamado José Augusto. Ele gostou tanto que desejou realizar o filme, onde além de autorizar a obra, eu participaria como ator. Fui tolhido de saída por minha mãe que jamais desejou ter um filho artista. O mais interessante é que ela era uma grande artista anônima. Desenhava, pintava, fazia artes manuais incríveis, tinha um tino retórico para lidar com as palavras fosse na oralidade ou na escrita. Suas cartas, que muito bem escritas descreviam magicamente qualquer situação, além de bem humoradas, até poéticas e com quê caligrafia!

Creio, eu herdei muito, esses talentos dela, mas o fato é que tive aí a minha primeira grande frustração. Não houve jeito de fazê-la aceitar-me como artista. Doía-me muito uma frase, entre tantas outras de impacto que até hoje guardo comigo, que era: “Prefiro chorar pela sua morte, que pela sua sorte!”, mas como já disse, eu também não era fácil e a cada impedimento sofrido relutava, persistia.

Noutra ocasião, desejei participar como ator de uma peça chamada “Maria do Céu”. Usei o meu poder inato de convencimento, para aproveitando esse título, fazê-la crer que se tratava de um tema religioso tendo Nossa Senhora como figura central, ao mesmo tempo em que interiormente pedia a mãe de Jesus para que me perdoasse pela deslavada mentira. Na verdade era um enredo que contava acerca do romance de uma madura prostituta com um jovem adolescente, que seria o meu papel. O medo que eu tinha, além do castigo celeste, era de que ela fosse um dia assistir a tal peça e descobrisse a minha mentira, o meu pecado e erro. Não teve problema porque ela não permitiu.

Tanto insisti que acabei vencendo a batalha, para o meu bem ou para o seu mal e do teatro baiano. Em 1964, estudava no Colégio Central e me inscrevi de pronto num dos grupos teatrais que eram incentivados pelo grêmio estudantil e logo comecei a ensaiar A Exceção e a Regra, de Bertold Brecht e depois participei de uma mostra musical, na qual cantei João Valentão, de Dorival Caymmi e Berimbau, de Baden Powell e Vinícius de Morais. Fui assistido por Gilberto Gil e Fernando Lona. Ambos gostaram de me ver e ouvir cantando e Lona me convidou e a Jota Bamberg, a Helenilton e Nemésio Garcia para formarmos com outras pessoas, um pequeno coral que comporia com ele o Show Terra de Ninguém que teve direção de João Augusto, o grande João, pai do Teatro Vila Velha. Para tal precisava da autorização de minha responsável que era mamãe. Fernando Lona era bastante conhecido porque participava dos programas musicais da TV Itapuã e mamãe conhecia a mãe dele, que dizia maravilhas do filho, um excelente filho. Dessa forma era fã de Fernando Lona de quem admirava a voz e o trabalho musical. Pra quem não sabe ou já não se lembra, ele ganhou um dos festivais de música de uma rede de televisão com Porta Estandarte em parceria com Geraldo Vandré. Eis a minha carta de alforria, pois mamãe assinou, reconheceu firma, deu entrada no Juizado de Menores autorizando-me a participar do show. Naquela época a autorização não tinha prazo de validade e isso me valeu de passaporte para continuar fazendo teatro no Vila. Dali foram diversas peças teatrais que participei: O Noviço, de Martins Pena dirigida por Othon Bastos, Estórias de Gil Vicente, autoria e direção de João Augusto, A Flor e a Náusea com poemas de Carlos Drummond de Andrade, Flor dos Vinícius sobre a vida e a obra de Vinícius de Moraes. E nunca de ‘núncaras’ jamais, que deixei o teatro, contaminado que fui desde Jequié, em 1962, pelo seu vírus teatral.

Mamãe ensinava aos filhos desde as primeiras letras até entrarem no primário. Depois era somente acompanhamento diário nos deveres e assuntos levados para casa. Todos os seus filhos já iam adiantados para as classes escolares. No meu caso, eu prestei um exame de avaliação no Colégio de São Bento e embora classificado para entrar na 4ª série, eu não pude cursá-la porque não tinha idade suficiente, mas fui para a 3ª e depois da 4ª fiz pouso sem escala passando pelo concurso para a admissão ao ginásio, aterrissando no Ginásio Estadual Góes Calmon e isso, sem nem passar pela porta da 5ª série, sinal da preparação que obtive nos primeiros estudos com ela. Com meus irmãos foram situações semelhantes à minha.

Mas era muito severa com todos e principalmente comigo, o raspa-tacho. Incrementada ela com as dores e mágoas de sua relação com meu pai, que sempre trabalhou no interior passando maior tempo fora de casa, vindo apenas 1 vez por mês ou em períodos de 45 em 45 dias. Meu pai, fiscal de rendas do estado desejava morar com a família onde ele estivesse habitando, mas mamãe nunca quis alegando o desejo de ver seus filhos estudando e formados, objetivo que ela alcançou à custa desse sacrifício da ausência dele. Ele, sujeito boa pinta, comunicativo e alto astral também não resistiu à solidão e arrumou uma outra mulher e com ela, uma nova prole com 5 filhos. Quando depois de 30 anos de casamento, ela descobriu essa façanha do velho, separou, sofreu e parece-me, descontou suas mágoas e dores em cima de mim.

Mas como já disse, mamãe gostava de música, herança do avô materno de augusta descendência francesa que também gostava e promovia verdadeiros concertos e saraus após o poente com os filhos, sobrinhos e netos tocando para o seu deleite. Ela ouvia música do melhor quilate, fosse clássica ou popular brasileira. Não perdia, pelo rádio, os grandes programas musicais ao vivo da Tupy, Mayrink Veiga, Rádio Nacional e era fã de César de Alencar, de Emilinha Borba e franzia a testa para Marlene, concorrentes entre si nos concursos de Rainha do Rádio. Lembro-me daquela música clássica que ela ouvia e solfejava que era “Meditação de Tai”, de Jules Massenet.

Na fase da grande paixão por meu pai, eu nunca entendi o motivo pelo qual ela não nos deixava escutar a “Canção da Manhã Feliz” composição fantástica de Haroldo Barbosa e Luiz Reis, gravada na época pelo maravilhoso Miltinho, que dizia e ainda diz assim, pra quem gosta:

Luminosa manhã, / por que tanta luz? / Dá-me um pouco de céu, / mas não tanto azul... / dá-me um pouco de festa, não esta, / que é demais pro meu anseio, ela veio, manhã, / você sabe / ela veio, / despertou e chorando até me beijou, / eu abri a janela e este sol entrou / de repente em minha vida / já tão fria e sem desejos, / estes festejos, esta emoção... / luminosa manhã, / tanto azul, tanta luz / é demais pro meu coração...

Realmente nunca pude compreender a proibição de se ouvir algo tão bonito, tão sentimental e no presente se a ouço eu choro, se tento cantar, a voz embota, engasga, não contenho a emoção. Lembro dela, lembro de Gugu, meu irmão mais velho, de meu pai.

Toda mãe é para todo filho, uma mão divina quando se trata de cozinhar, menos a nossa mãe, ali, a grande artista não era uma fada nos temperos e cozinhados. E terrível era o dia em que ficávamos sem a empregada doméstica e ela ia fazer vez no seu lugar. Meio-dia, a mesa posta, todos famintos depois de uma manhã sacrificada na escola e ela dizia- nos: Tonho, Márcia, Dida, a comida hoje está uma delícia, fui eu que fiz. E éramos obrigados a comer o grude deliciando-se falsamente pra não criar clima.

Mas ela ensinou a amar a Deus acima de tudo, de nos amarmos e sermos fiéis uns com os outros, a não ter preconceito, embora ela o tivesse, considerando o jeito como discriminava os namorados de cor de Márcia, sempre chegada à cor. Bem, leve-se em conta que ela embirrava com quase todas as namoradas ou aos namorados de seus filhos e de suas filhas, ciumenta, que sempre foi, mas jamais discriminou que eu visse ou soubesse alguma pessoa negra. Ouvi dela muito pequenino, que negra e branca eram as cores da pele, que por dentro não havia distinção, que cortássemos a derme de um ou de outro e jorraria de ambos, sangue vermelho.

Essa história de ciúme das namoradas me pegava sempre e em cheio. Sempre fui namorador e às vezes tinha mais de uma namorada, a exemplo de Tuda e Bina, cada qual no Colégio Central em turnos diferentes, Tudinha, matutino, Bina, vespertino. Se uma ou outra ligasse me procurando ela me entregava dizendo para uma, que o que sabia de mim, era que eu tinha ido encontrar com a outra. Infernizando a minha púbere existência.

Era uma relação mãe e filho, muito difícil. Quando me tornei pai aos 24 anos, eu já morava em Serrinha e ela resolveu, numa das voltas na relação com meu pai, ir conhecer Tati, minha primeira filha. Quando ela a pegou no colo e disse: “esta menina não tem nada de seu. Se você disser que é sua filha a quem conheça a nossa família, ninguém vai acreditar que é sua filha”. Doeu. Era como se estivesse a me dizer que a minha mulher me enganara e emprenhara de outro homem. O segundo filho, Mauro ou Lico nasceu e a cena se repetiu quase igual. Veio Nanda escarrada e cuspida ou cagada e esculpida, a minha cara e o comentário dela mudou: “Ah, parece que estou com Gugu no colo. É a cara dele!” Aí, eu não suportei e disse a ela: tomei o sêmen dele emprestado pra gerar esta filha. Não apenas o sêmen, provavelmente o órgão genital. E ali, foi ela quem se ofendeu.

Já no fim de sua vida, ela fez uma declaração que me tocou profundamente. Que eu era o filho que mais a orgulhava. Todos formados, bem conceituados, mas eu lhe dera muito orgulho na profissão que escolhera eu, a de artista. Que sempre ouviu falar muito bem de mim como pessoa inteligente, sensível, educada, e competente profissional.

Nada de mágoas, apenas relatos de situações pouco comuns entre filho e mãe. Devo todo esse elogio transmitido por ela quase que em despedida. Aprendi a ser leal, honesto, fiel, amigo, pai, filho, irmão, parceiro, devoto às minhas crenças religiosas e de vida, enfim, respeitador. Aprendi até a gostar, já não digo de estudar, mas de ler os assuntos que me fazem palpitar e palmilhar, de vir a os pesquisar e ter-me feito crescer intelectualmente.

Como escritor memorialista, peco por não descrever os cenários ou não registrar datas, embora dite lugares e momentos pelos quais passei e dá pra se ter no geral, alguma idéia.

Para maior compreenção e elucidação em torno dos personagens do capítulo, eis minha família, pai e mãe com irmãos:

Jorge e Maura; Augusto; Myrian; Ruy; Jorge; Hedwiges (Dida), Márcia e eu, Antônio Fernando.

Em suma devoto a ela o amor pela vida e pelo viver, o ser adepto de uma ainda não existente filosofia ou sistema, por que não político? Porque ainda não me dediquei a esse fim: o “RESPEITISMO” para delimitar os direitos de cada ser e os direitos de todos os seres, registrados nesta frase de minha autoria:

DÊ-SE O DIREITO, DANDO O DIREITO, DANDO-O DIREITO!

Antonio Fernando Peltier
Enviado por Antonio Fernando Peltier em 19/01/2009
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