COMO FUI PARAR EM SERRINHA (AUTO-BIOGRÁFICO "CONVERSAS COM MACAÚBAS"

CAPÍTULO XIII

1966

Era maio de 1966. Interpretava, como ator e cantor, “Flor dos Vinícius (e Mello Moraes também)” sobre a vida do poetinha, no Teatro Vila Velha, em Salvador, sob as direções teatral e musical, de João Augusto e Carlos Coqueijo Costa. Atuava e cantava em coro e também individualmente, embora apenas uma música inédita do próprio Vininha, a poesia e composição musical de João Gilberto, cuja letra dizia assim:

Como um barco a vagar

Sobre as águas de um mar,

Bem manso, muito manso,

No balanço de um luar...

Assim possa ser para sempre,

Oh, minha querida,

A vida do nosso amor

Como um rio macio

Em busca de um mar

A vida do nosso amor

Como uma estrela de madrugada

Como o carinho da criatura amada

Como o silêncio do entardecer

Como uma lenta chama que arde até morrer

Lalaialá

Como o silêncio do entardecer

Como uma lenta chama que arde até morrer

Naquele momento aprendi e entendia muitas coisas (a gente só aprende e também só sente o que a gente entende!), entre elas, que as palavras têm textura que é o sentido físico do que elas significam e precisamos foneticamente transmitir. Por isso eu sublinhei as palavras: manso, macio, carinho e arde. Não podemos pronunciá-las, senão expressando a textura. Manso é ‘maaanso’, calmo, tranqüilo; como bravo é bravo, macio é algo macio e não é crespo e carinho todo mundo sabe como é e não pode ser de outro jeito. Também aprendi a imitar João Gilberto, meu grande mestre em divisão de frases musicais, respiração e ritmo e na entonação correta dessa textualidade fonética das palavras, conjunto que complementa a interpretação no cantar e no falar. Tudo isso ajuda e acrescenta na pronunciação e dá os sentidos de cada palavra não só nos versos poéticos, mas em toda a forma de oralidade ou ‘oralização’. Fiz um sucesso danado nas apresentações e principalmente cantando essa modinha.

Fui resistente inicialmente com o ter que imitar perfeitamente João Gilberto, por imposição de Coqueijo que desejava homenageá-lo e aí o motivo da imitação. Por outro lado João, o augusto diretor artístico e geral, instigava-me a cantar com personalidade, ou seja com a minha voz, meu timbre, meu jeito, minha interpretação, mas havia o choque: quando eu me soltava, Coqueijo se estressava, quando eu imitava, João ficava ‘puto’. João então me chamou no camarim e disse: ensaie como ele quer e cante nas apresentações como quero eu, que é como você quer. Segui o bom conselho e me dei bem. O próprio Coquejo, depois, concordou.

As pessoas iam todo dia ao camarim me abraçar e ao elenco, que tinha grandes nomes como o de Othon Bastos, Mário Gusmão e congratulando-me pelo trabalho e, sobretudo, pela interpretação daquela inominada, então, e ainda, sem nome mesmo, inédita, jamais tivesse sido gravada e que realmente esqueceram de dar um título. Assim ficou, até que me provem o contrário.

Entre os visitantes, esteve numa certa noite, um jovem médico residente em Serrinha, chamado Hamilton Safira Andrade, que me convidou para jantar e fomos até o restaurante Alto de Ondina, onde e quando fiquei conhecendo o homem idealista que ele era e suas convicções como socialista, vindo a propor fazermos um trabalho cultural com a juventude de Serrinha. Interessei-me muito, mas não pude ir logo começar, por conta dos meus compromissos profissionais com o Teatro Vila Velha.

Somente em setembro, exatamente no dia 25 do mesmo ano chegava a Serrinha com o fim de passar um final de semana, reunir alguns jovens, conversar sobre teatro, enfim trocar idéias.

Aquele primeiro encontro juntou 52 jovens, alguns funcionários do Banco do Brasil vindos de outras cidades e até de outros estados e uma grande maioria de serrinhenses ou de residentes lá. Abnoan Rosas, Derval Freire, Geraldino Lima, os irmãos Amélia e Zé Pedrosa, Antonia Nunes, Grimaldo, Olindinha Nogueira, foram os que consegui registrar na memória, criaturas inenarravelmente incríveis que me contaminaram com o desejo de trabalhar por uma carência de ocupação cultural, de crescimento. Fim de semana que se estendeu por 2 anos e meio. De 66 a 69, e ainda na base do ir e vir, até 1975. Em 67 retornei aos estudos optando pela conclusão do 2º grau e o curso de Magistério, no Colégio Comercial de Serrinha.

Fundamos o GRUDE-Se – Grupo Debate Serrinha, inspirado no Jornal Debate, do Partido Comunista, underground, proibido pela ditadura militar. A proposta era fazer cultura, arte, pesquisa. Líamos a cada grupo de 11 ‘grudesianos’, 1 livro cada um, portanto 11 livros em cada levada, depois trocávamos os livros a cada “ciclo de leituras” que eram discutidas, debatidas.

escrevemos e montamos “De Guerra com a Vida e No carnaval”, “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, “Manchetes I, II e III”, “De Inconfidência”, “De M.P.B.” Estudamos Bertold Brecht, Cecília Meireles, Pablo Neruda, Walt Whitman. Ouvimos e discutimos Billy Holliday, Mahalia Jackson, Nina Simone, Frank Sinatra, Cole Porter, The Beatles e Rolling Stones. Debatemos guerra do Vietnã e a autodeterminação dos povos, a igualdade entre os homens. Assistimos muito cinema, trouxemos filmes importantes como “Aquele que Deve Morrer”.

Enfim, revolucionamos, abalamos as estruturas políticas tão oligárquicas quanto ultrapassadas, mudamos mentalidade, fizemos cabeças, demos visibilidade a mais de centena de jovens que se encontrou com as suas vidas, seus anseios, suas famílias. Viramos manchetes e matérias dos jornais no Brasil e na Bahia, porque compramos uma briga com o pároco Demócrito Mendes de Barros, que fazia parte da política retrógada da cidade de Serrinha, a nos acusar de comunistas e anarquista. O Dr. Hamilton respondeu a inúmeros inquéritos policiais militares. Quiseram proibir as apresentações de "Auto da Compadecida", cujo autor era católico e compromissado com a então igreja brasileira. A igreja católica no Brasil tomou posições e até se dividiu entre os prós nossa encenação e os contras. Jornais do Rio e de São Paulo noticiaram nas páginas primeiras, essa quase sacrossanta guerra entre a arte e os malazartes...

O GRUDE-Se descobriu e projetou valores, revelou talentos como Abnoan Rosas, Gereba, Vicente Barreto, Raymundo Monte Santo, Capenga, Zé de Henrique, Fábio Paes, Expedito Oliveira, Celeste Carneiro, Petinha, Micau, Orlandinho, muitos outros.

Serrinha me pegou de supetão, me submeteu, eu me apaixonei. Quis dar-me inteiro, corpo & alma total. Amei as morenas belas Gleydes, Graziela, Neuma, Lucinha, Mirtinha. Custava pouco o tempo com cada uma, exceto Mirtinha, com quem me casei.

E conforme corre bocas-ouvidos, a estória de quem bebeu da Água das Abóboras nunca esquece Serrinha e nem suas morenas belas, encerro o capítulo com a poesia que nos conta direito esta simpatia.

ÁGUA DAS ABÓBORAS

Só quem bebeu das’ ‘Abobras’,

sabe disso ‘inté’ de sobra,

dos encantos que ela tem.

Sua água que enfeitiça,

deixa o cabra com preguiça,

de bobeira e ‘xenhenhém’...

Paixão na morena bela

dá a vida por essa donzela,

se amarra, não mais sai de lá...

das serras ao redor de Serrinha...

da rica pobreza da terra,

da mandioca à farinha

Quem foi e bebeu nas ‘Abobras’

Já não tem mais ‘qui’ beber!...

Aterraram a lagoa das cobras,

feitio ‘marvado´ das obras

do poderio do poder...

e a seca então se desdobra...

Lembrança ficou na aquarela

no pincel do pintor, sua tela,

profissão de aguadeiro ‘cabô’!

Aguada se vira em deserto

que é também coisa bela

mas só pra poeta e político

cujo destino é incerto,

mas fazem sertão virar mar...

Serrinha então,

não reclama o engano,

pois em sendo sertão, é oceano...

imensurável mãe, ‘boadrasta’

de um amor infinito que arrasta.

E quem bebeu das ‘Abobras’ não afasta

da amante amada seu insano amor.

Quem ‘bebericou´ das ‘Abobras’,

já não ‘beberica’, mas torna

pro seio da serra no cio da terra

e se embriaga no fluido do seu amor...

Antonio Fernando Peltier
Enviado por Antonio Fernando Peltier em 20/01/2009
Reeditado em 18/07/2010
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