RAYMUNDINHO MONTE SANTO, QUE FIGURA!

Que figura, o tal Raymundo José Guimarães Barreto, ou simplesmente Raymundo Monte Santo ou ainda mais interessante, o ‘véio’, o tal do Raymundinho. Criatura que conheci em Serrinha, nos fins dos anos 60 e um cadinho dos 70. Foi um sujeito multifacetado de personalidade forte, bem humorado e cômico, músico: tocava violão e guitarra, cantava e compunha melodias com uma facilidade e riqueza muito grandes, além do artista, meu maior parceiro, com o qual fiz um sem número de músicas, sendo poesias minhas e melodias dele. Mas foi como pessoa, como companheiro de venturas e desventuras, que tentarei contar com fidelidade e graça, casos que viraram causos seus ou pelo menos, tentarei:

Nos “Deuses”, um grupo musical maravilhoso que tinha artistas como Gereba, seu primo, Vicente Barreto, Capenga, os dois Zés, de Henrique e dos Couros, Gordo, Ivênio Azevedo e Flávio de Aluízio Preto, ele deitava e rolava aprontando sempre suas peraltices e gracejos, senão vejamos: certa feita numa longa e cansativa viagem após uma tocata pelos sertões da Bahia, ele, Raymundinho resolveu de combinação com o motorista da Kombi, pregar uma peça em toda a banda, promovendo a simulação de um acidente, aproveitando que todos, exceto ele, e é claro, o motorista, dormiam. Com a caixa da bateria, seus cambitos e os pratos da bateria de prontidão nas mãos, o carro parado no acostamento da estrada e totalmente às escuras com todas as luzes do carro totalmente apagadas, começou a bater fortemente nos instrumentos que dispunha para dar idéia de batidas ou fortes pancadas e ambos a gritarem: Ai! Ui! Socorro, minha perna! Tô preso nas ferragens do carro! Ai, eu vou morrer, me acudam! Foi uma carreta! Claro, que os demais acordaram assustadíssimos, sem entenderem nada do que poderia estar acontecendo. Gereba, o mais sereno de todos, logo bradou: calma, calma, companheiros, nada de mais nos acontecerá. Raymundinho, meu primo, eu vou resgatá-lo, tenha paciência! Um verdadeiro vexame até o momento em que um dos dois, ele ou o motorista acenderam a luz interna do veículo e caíram na gargalhada. Daí, foram, alguns “safanões” da turma nos dois safados e muito mais gargalhadas no restante da viagem, na qual, ninguém dormiu mais.

A facilidade de improvisar letras de músicas estrangeiras versadas do nada, num clique de inteligência durante o desenrolar de uma festa. Um cara pediu pra ele cantar uma melodia chamada de “internacional” e ele conhecia a música, mas não sabia a letra em inglês. Era sempre muito bom tocar e cantar o que o público pede, e ele não negava fogo, jamais deixou de atender tais pedidos, bastava conhecer a melodia e ele era uma enciclopédia do conhecimento musical e da discografia mundial. Então ele saiu-se assim:

- Ah, cara, essa música eu sei, mas prefiro cantar uma versão que está fazendo sucesso nas maiores capitais brasileiras. A versão ganhou o nome de Verinha, um cantor e compositor que é até baiano, chamado Raymundo Monte Santo, porque ele é dessa cidade aí, ontem mesmo ele cantou no programa do Chacrinha.

Virou pra banda, cochichou com o tecladista que era Zé de Henrique, que fez algum sinal pros demais e depois do tradicional 1,2,3... 1,2, 3, 4... e mandou ver:

Eu sofri demais,

quase enlouqueci...

o seu amor fugaz

me deixou assim

(ai ele se contorcia todo como se estivesse sentindo e ao mesmo tempo ilustrando alguma grande dor física, mas sem parar de cantar, nem atravessar o ritmo nem o andamento, continuava:)

Perdi meu coração

Mas nunca lhe esqueci...

Verinha!

E repetia esses maltratados versos não sei quantas vezes.

Raymundinho era gago, o que o tornava ainda mais engraçado tropeçando nas palavras, ficando nervoso, mas jamais desistindo de continuar aquilo que oralmente desejasse expressar e ainda por cima, gostava muito de uma candibrina, fosse branquinha, lourinha ou da cor que viesse, ele comia água com coentro. Quando ele se desentendia com Gleydes, sua mulher ia bater lá em casa já “mamado” e buscando o ombro amigo que era o meu, também casado, portanto, capaz de compreendê-lo melhor. Um dia assim aconteceu, só que eu também estava injuriado com a minha digníssima e saímos por aí bar em bar, bar em bar, tomando todas e mais algumas, já que o ombro recíproco era o que não ia faltar. Depois, resolvemos ir a um circo plantado na praça da Igreja Nova, que era de um casal de artistas circenses da cidade de Jacobina. O circo tinha um nome, mas ninguém o chamava, sequer lembrava ou eu lembro o seu nome e para todos, era apenas, o circo de Maru e Marilda, seus donos. Entramos com os dois convites oferecidos por Maru, ora, éramos artistas e artistas não pagam circo. Sentamos no galinheiro. Eu olhei para o alto, em vi o circo rodar, seu mastro, sua lona, senti a sensação de estar dentro de um disco voador, aquelas luzes brancas das gambiarras, mas fui acomodando a cabeça e logo começou a função. Apareceu Chega-Chega, um palhaço, o mais engraçado de toda a minha vida. Sabem por que ele se chamava Chega-Chega? Não? Vou te contar: ele era gago, igualzinho ao meu amigo Raymundinho. Aí teve aquela hora que o Chega-Chega chamou um voluntário na platéia para compor um número com ele, dividindo o picadeiro e o meu personagem-parceiro não contou conversa e foi ao encontro do palhaço. Aí, desenvolveu-se um diálogo muito interessante, apesar de um pouco ininteligível:

Chega-Chega:

- E-e-e-e-e-e-e... bo-bo-boa a noi-i-i-te!

Raymundinho:

- E-e-e-e-e-e... bo-bo-boa a noi-i-i-te!

Chega-chega: (meio encabulado)

- Co-co-como vo-você-cê se-se-se-cha-cha-chama?

Raymundinho:

- E-e-e-eu me-me-me cha-cha-chamo Raymundinho.

Chega-Chega: (cismadaço e nervoso)

- E-e-e-e-e vo-vo-você pá-pá-pá-páre de-de-de-de me-me-me a-a-a-a-re-re-re-me-me-me-dar...

Raymundinho:

- Ma-ma-mais e-e-e-eu nu-num to-tô lhe a- a-a-a-a-re-re-re-me-me-me-dan-dando... É-é-é-é

qui-qui-qui... e-e-e-eu tam-tam-tam-bé-bém sô-sô-sô ga-ga-ga-ga-go...

Chega-chega:

- E-e-e-e que-que-quem é-é-é-é o-o-o-o pa-pa-pa-lha-lhaço a-a-aqui, e-e-e-eu ou vo-vo-você? E a platéia se arrombava de tanto rir apostando que era um número ensaiado.

Certa feita, meu amigo Raymundinho, gago que nem preá, se é que preá gagueja, extremamente irritado com sua esposa, no meio de mais uma viagem com os Deuses, dentro da Kombi, começou a pensar e a expor oralmente o que lucubrava em seus borbotões, lentamente e causando um enorme suspense entre os companheiros de jornadas musicais, lembrando um certo diálogo suassuano, que dizia:

Ray - Meu De-De-Deus, que pen-pens-pen-sa-samen-men-to pa-pa-pa-pa-vo-vo-vo-ro-r--roso, ri-ri-ri-ridí-ridí-dí-cu-cu-cu-lo até-té... (pausa)

Nós - Mas o que é, Ra]ymundinho, o que é que se passa nessa sua cachola?

Ray - Um pen-pen-pens-pen-sa-samen-men-to te-te-te-rí-rí-ri-vel…(pausa um pouco maior)

Nós - Diga, homem, a gente tenta ajudar…

Ray - É-é-é-é um pen-pen-samento ru-ru-ruim, ma-ma-mas é bom! (deixo de escrever o gaguejado dele para dar margem a quem estiver lendo, de imaginá-lo gaguejando) É ruim, mas eu queria que acontecesse, aquela peste!...Ela me paga! (Pausa ainda maior)

Nós - Fala, homem de Deus, se você não falar, a gente não pode lhe dar força, vamos, desembucha!

Ray - Eu queria que acontecesse, é ruim, mas eu queria que pudesse acontecer...

Nós - (Impacientes) O quê, Raymundinho?

Ray - Eu queria estar chegando em minha casa, agora. Eu pegava a penca de chave, escolhia a da porta de rua, (fazendo o maior suspense e o grupo começando a ficar agoniado) eu enfiava a chave na fechadura... (Pausa imensa)

Nós - E aí, peste, fala logo! (Imaginem esse suspense e ainda a gagueira para completar a situação)

Ray - Aí, eu girava a chave assim: uma vez, duas vezes, três vezes, por causa do trinco... (Que pausa!)

Nós - Fala, cão!

Ray - Eu entrava em casa, na sala, no escuro, em silêncio, tirava os sapatos e ia assim, na pontinha dos pés, pra não fazer barulho, pra não chamar a atenção, pra não tirar ela do seu conforto.

Nós - Sim, e daí... não queria acordá-la...

Ray - Não, eu quero que ela esteja acordada....

Nós - Pra quê?

Ray - P´reu continuar seguindo em silêncio até a porta do nosso quarto, que vai estar fechada...

Nós - E aí?

Ray - E aí, que eu vou botar a mão na maçaneta...

Nós - Vai, véi... Já sabemos, vai abrir a porta e encontrá-la deitada de camisolinha, e...

Ray - Aí eu torço a maçaneta... abro a porta e o que eu vejo?... o que eu vejo? O que eu vejo?

Nós - Sim, o que você vê... já dissemos, vê-la de camisola, a calcinha aparecendo...

Ray - Nada disso. Eu vejo é ela deitada com um macho por cima dela... E eu vou...

Nós - (caras de pavor) Não diga que você vai ma...

Ray - Eu, matá-la, nunca... eu vou é pegar o safado do cara e...

Nós - (caras de mais pavor ainda) Matá-lo!

Ray – Eu vou matá-lo? Nunca.

Nós – Não vai matá-lo?

Ray – (fresquíssimo) Eu vou é pegar ele e dar um abraço e vou dizer a ele: meu amigo, me dê um abraço. Olhe, leve ela com você, pode ficar com ela. Graças a Deus, me livro dela desse jeito.

Com ele, eu me inspirava e escrevia poesias pra ele musicar, tais como: “Soneto de Desencantamento”, “O Gosto Amargo de Amar”, “Baita Preazada”, “Vida que vem

Melhorar”, “Batatinha Frita, 1,2,3” publicados no

http://www.recantodasletras.com.br/autores/afernandopeltier

Muitas poesias eu escrevi pra ele musicar. Raymundinho musicou em parceria, escolho algumas, cito outras. Ele foi o maior propulsor de me fazer passar pro papel, sentimentos, vivências, sentidos, sentimentos, sensibilidades, ideologias, idealismos, sonhos e realidades.

Antonio Fernando Peltier
Enviado por Antonio Fernando Peltier em 23/01/2009
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