Ela

Eu não sabia de sua natureza.
A mim parecia uma coisa distante.
O que nunca se sente parece que não existe.
Fazia parte dos contos de terror
das histórias noturnas ao pé do fogão.
Um frêmito e é só.
O sono restaurador leva tudo para o porão.

Mas ela estava lá, a espreita.
Apareceu a primeira vez como um fogo em brasa.
Depois foi a vez da água barrenta
passos afundando no limo esverdeado
conduzindo ao encontro do corpo desnudo.
Mas nada. Eu dormia e o mundo se reequilibrava.

Quando retalhou o meu corpo, veio de mansinho.
Tentei costurar os pedaços, pathwork mal feito.
A cicatriz dói quando chove salgado.
E o vento frio que vem do sul em redemoinho
paralisa os meus passos em direção ao sol.

Uma vez pensei que fosse um anjo
que se apossava de um outro anjo.
Imaginei suas asas rosadas batendo ao vento,
buquês de mimosas florres campestres
colorindo o arco íris do chão ao céu.

Outra vez a vi terrível, a foice em riste,
os cabelos emaranhados por entre os véus,
as vestes negras como a noite sombria.
Pensei que a mim buscava, que me queria.
Passou como o vento gelado, riso de escárnio.

Ela é assim, a natureza dúbia, tem duas faces.
Tento sair deste torpor paralisante
e ver além do que os meus sentidos mostram.
Espero em silêncio pelo nosso encontro.
E finjo-me de morta para enganá-la.

E ela ri de mim enquanto me espera.