Memória da Terra

Pedes-me sorrisos na hora exacta

em que o orvalho da memória se sublima.

Olho-te com os olhos fundos

e vejo nos teus cabelos grinaldas de flores sem cores

Porque hei-de sorrir e não alevantar a voz

em grito universal de todas as latitudes?

Grito que nos chame e nos empurre

ao encontro de todas as vozes.

Grito que transporta a voz da memória

para outras idades.

Grito entregue aos ventos que uivam noites

a erguer vontades. conquistar espaços.

Liberdade.

Liberdade que liberte

a vida da precariedade do amor

Amor rubro ou diáfano

desamado

reverenciado por todos os poetas das palavras opalinas.

Sou produto de inúmeras contradições

sedosos enredos expectantes

que me dizem ter dois mil anos.

Sou prisioneiro dos livros de ponto

dos horários burocráticos, burocratizados, burocratizantes.

dos relógios com ponteiros.

Conflito permanente entre ordem e liberdade

E digo-te tenho fome.

Fome de poesia que ultrapasse a versalhada.

letras dispostas em inúmeras combinações

pintadas em papel higiénico

que já me irrita a fatuidade dos puetas

das palavras cerzidas.

insectos impuros que se querem eruditos

detentores de todos os saberes.

conhecedores de todas as regras

com que se navega nas águas

dos rios que correm abruptos

como o cuanza(1) na cangandala.(2)

Ninguém vê

na minha camisa de seda

as sedes que trago.

Só o vento, como hiena a rir

conhece as minhas dores verdadeiras ou fingidas.

Não finjo amor pelas flores amadurecidas em estufas

rosas ou malmequeres em todas generalizo buganvílias

Bandeiras.

metáforas que buscam a luz do sol

explodem sortilégios com violência.

As minhas mãos

regem a dança do quissonde na paisagem das anharas e

todas as agonias indefinidas dos vencidos.

Vencidos

que no desequilíbrio emocional

criam deuses verdoengos,

a quem consagram a graça de viver.

força inata não vencida.

Ah, Kalumba!!(3)

Não te sorrio.

Registo pacientemente a luz irradiante dos cadáveres.

Ofereço-te a emoção fotográfica

memória dos glaciares do medo.

Respondo-te com a força da palavra que não morreu.

Com a chilreada matinal dos ondigos(4)

mensageiros abençoados de todas as boas novas.

A brisa sudoeste

fermenta na minha cabeça visões

paisagens quadrupedes.

Olongos(5) marcam a fronteira

laranja púrpura do crepúsculo no deserto do Namibe.

Ontubas(6) extravagantes

estendem longos braços sobre a cor pálida das areias.

Polvo do deserto?

Rosa-dos-ventos?

Manuel C. Amor

Setembro, 2006

(1) Maior rio de Angola

(2) Região onde existem as maiores quedas de água de Angola

(3) Mar, Oceano, Além Túmulo, Eternidade, Deus;

(!) Santo Deus! Que horror!

(4) Pássaro da família das Mérópidas

(5) (Strepsicerus Strepsicerus) Grande antílope, muito freqüente na região litoral de Angola.

(6) Designação indígena de Welwitschia Mirabilis, planta única no mundo e apenas existente no deserto do Namíbe (Mossâmedes) Sul de Angola.