No mais...

Às vezes é preciso de um uivo

de um lobo chamuscado de dor

que venha com seu pêlo ruivo

chamando, no morro, a fazer amor

às vezes é preciso muita desilusão

e sentir a flecha passando rente

deitar por nada, sem ter tesão

e usar, nos cabelos, um pente

às vezes é preciso ser um pouco são

comer todas as frutas da mesa

chamar qualquer deus sem razão

e ficar de joelhos, como quem reza

às vezes é preciso ir sem olhar pra trás

cuspir na linha e peitar no desafio

cair de bêbado na calçada, pela paz

chamando a guerra num assobio

às vezes é preciso fazer perguntas

e não se preocupar com resposta

deixar as pernas bem juntas

e não aceitar nenhuma proposta

às vezes é preciso implorar

e chorar pela vida que incendiou

conjugar todo o verbo amar

e gargalhar pelo que acabou

às vezes é preciso ser só um palhaço

não ligar para o desprezo do olhar

fingir que seu destino é um reto traço

e que a vida vai reconstruir e ajeitar

às vezes é preciso esquecer a dor

nem lembrar que se foi enganado

meter o pé, no santo e no andor

e dar aquele sorrisinho de lado

às vezes é preciso entrar numas

ficar na neura e sentir a loucura

ter na boca os votos de umas urnas

e engolir, sem água, o que não cura

às vezes é preciso rasgar o pano

e sair por aí, cantando Chão de giz

que solidão é sina de bicho humano

e, às vezes, é preciso ser um pouco feliz.