Anoitecer
Vou para casa ao fim da tarde, num autocarro cheio.
Estou cansado, e os ruídos incomodam quase tanto como as pessoas,
Os rostos cansados da vida, os gritos de uma criança, algumas mulheres de preto,
A quem ninguém, nem eu, deu o lugar.
Toda esta humanidade ali concentrada faz-me mal,
E os olhos fogem pelos vidros e estendem-se pela planície
Fujo com eles e perco-me nas linhas suaves da terra
No azul manchado do céu e na beleza angélica das nuvens que o sol queima.
Esqueço o autocarro e lembro esta mesma planície.
E lembro-me de como a olhava antes, o céu continua suspenso,
Mas agora debaixo dele as arvores já desistiram e apenas arranham o azul
E tudo parece ainda mais horizontal e monótono, estou cansado.
Dantes quando eu olhava esta planície o céu era apenas azul e eterno…
Lembro-me que um dia vi na televisão uns índios com medo que o céu caia,
Lembro-me de os achar ridículos, eu não tinha medo, nem estava cansado.
E olhava a mesma planície, o mesmo céu procurando-te sem saber que te procurava.
Eras ainda apenas o ideal, a forma indefinida que eu amava já, em cada seara.
Depois, um dia, apareceste e com o olhar, com o seu fundo, mudaste tudo
Deste-me mais vida. Mais esperança. Mais sangue a correr mais depressa,
E mais medo, os índios deixaram de ser ridículos e talvez o céu tenha ficado mais denso
As aves voam agora mais lentas.
Depois, esqueci também o medo que lento adormeceu na ternura dos teus olhos,
Dos teus lábios e pude descansar um pouco nas ondas leves e escuras do teu cabelo
Adormeceste comigo, e nus e inocentes fomos, talvez, felizes…
O que aconteceu a seguir, o que acontece agora, não sei, ninguém sabe
Mas as vezes penso que tenhas acordado antes de mim, não sei…
Sei que deixas-te a planície, os sonhos, e também alguma da vida que me deste
O sangue corre agora mais lento, e seca nas minhas veias…
Contigo foi muito do que fomos, do que fui.
Deixas-te no entanto a esperança, quase cruel, a alimentar o medo.
Agora, estou cansado, e com medo vou acordando lento
E despertando num sítio onde o céu é denso, as aves voam devagar
E um vidro, sujo, me prende dentro dum autocarro sujo onde as pessoas me incomodam!
Estou cansado talvez demais, e o meu cansaço enche tudo
E entre o azul, agora denso, e a terra existe apenas um grande nada
Um sufocante nada, o céu é mais denso, a pessoas no autocarro…
Talvez os índios tenham razão, mas talvez não precisem ter medo
Estou cansado, o céu é denso, tão denso que nem parece azul….já não há aves….
Tiago Marcos